No último ensaio artístico de sua carreira, Elza Soares exibiu a potência de quem saiu do planeta fome para se perpetuar como a mulher do fim do mundo – decalcando no tempo e no espaço uma das vozes mais impactantes da humanidade
Direção_Allex Colontonio + André Rodrigues | texto_allex colontonio Apoio_Pedro Loureiro | Fotografia_Victor Affaro | Beleza/turbante_Wesley Pachu | moda/styling_fran piovesan | jaqueta salva-vidas_rafael chaouiche | looks_anderson neves + diego motta | Triângulo acrílico_Acrilmarco | Produção_Felippe Chagas | Retoucher_Marcelo Calenda
E quis o destino que a foto oficial – e definitiva – fosse a nossa. POP-SE foi o último veículo a fazer um ensaio artístico com a quimérica Elza Soares. O carro abre-alas do material que ilustra estas páginas é a mesma imagem que também abriu o último show da cantora carioca, com direção artística assinada por nós, no Theatro Municipal de São Paulo, no dia 18 de janeiro de 2022 e que, ironicamente, exatos dois dias depois, enfeitava o salão nobre de outro Municipal, o do Rio de Janeiro, em seu cerimonial de despedida, tal e qual uma flâmula. Elza, como a imprensa extraiu de seu premiado álbum A Mulher do Fim do Mundo para carimbar em clichê, cantou, literalmente, até o último de seus dias. Por um privilégio e confiança conquistados com ela na última década, estávamos lá também até o fim, colaborando com aquilo tudo, até a última nota, a convite da própria e de seu escudeiro Pedro Loureiro, o jovem e talentoso empresário que, entre outros tantos predicados, foi o grande articulador dos movimentos mais recentes da artista, incluindo sua reinserção de forma avassaladora sob holofotes além das fronteiras.
O ensaio
No finalzinho de 2021 embarcamos para o Rio, numa manhã chuvosa de terça-feira, com o fotógrafo Victor Affaro, o homem forte da maioria das nossas capas, e com o produtor Felippe Chagas. Lá encontramos a família de Elza, filhos, netos e bisnetos, reunidos na confortável cobertura do Recreio dos Bandeirantes, para onde se mudaram poucos meses antes (estávamos habituados àquele tipo de cena, já que documentáramos a diva em seu apê anterior, também espaçoso, rasgado para Copacabana, alguns outonos antes).
Como em tantos outros trabalhos que realizamos com ela, encontramos uma Elza no limiar entre a sisudez e o solar, com aquela respeitável aura de matrona e uma outra piscadela de cumplicidade, feliz c
om a casa cheia, super disposta com a nossa produção – ela tinha um apetite voraz para a modernidade e sempre encarava com bom humor nossas ideias – e quanto mais subversivas, melhor para ela. Gostava de se olhar no espelho e se enxergar glamourosa, extravagante. Vanessa, sua neta, nos recebeu com um café da manhã de fazer inveja às casas de chá colonial, em que você (eu, no caso) acaba perdendo a compostura. Pouco depois, para derrubar de vez o meu jejum intermitente, nos obrigou a almoçar e só saímos de lá depois do lanchinho da tarde, umas trinta arrobas mais pesados. Na casa de Elza a mesa era farta, as receitas eram dela e quem chegava era recebido como alguém da família. Foi assim que nos sentimos todas as vezes em que estivemos juntos, principalmente sob os seus domínios. De novo, para essa POP-SE, nossa leitura passaria, invariavelmente, pela plástica da divindade, uma rainha nagô estilizada em mood afro-futurista. A cara dela. A jaqueta super moderna de Rafael Chaouiche, com golas sobrepostas despontadas de ares espaciais, ganhou um adereço mais surrealista, no mesmo tecido, quase como um apêndice de sua grandeza (uma releitura da premiada foto que compusemos, produzimos e arranjamos para a GIZ Brasil cinco anos antes, e que era a favorita de Elza). Wesley Pachu, amigo e beauty artist inseparável da cantora, penou para ajambrar o turbante alto que eu queria. O tecido, o mesmo poliéster tecno-sintético da jaqueta, desestruturado e escorregadio, não parava em pé de jeito nenhum. Inventamos uma armação estrutural, mas daí ficou pesado demais para ela. No final, mil malabarismos depois, arquitetamos essa “colmeia” – metáfora da rainha da colônia. Embora sempre espirituosa, Elza tinha uma nonchalance charmosa, demorava para esboçar um sorriso. Quando começamos, não queria mais parar de posar.
Naquela mesma manhã fui formalmente convidado para fazer a direção de arte/imagem de seu último DVD. Assim como a revista que você só agora tem em mãos, o show seria adiado umas cinco vezes, exatamente pelos mesmos motivos que têm postergado tudo (até o Carnaval). Terceira onda, ameaças de lockdown, falta de insumos. O tempo extra foi o gatilho para que eu e minha equipe fôssemos trabalhando em coisas mais improváveis, viabilizadas na raça. Assinamos os cenários, dois figurinos para a estrela, as roupas dos músicos e a arte da capa. É claro que todo mundo já esperava da gente uma versão 2.2 da estética do torso (sem culpa nenhuma, uma vez que revisitar a si próprio é estilo, não cópia, como diria Alfred Hitchcock). Mas queríamos mais potência, sem meramente repetir uma fórmula que dera certo. André e eu viajamos na maionese durante a concepção – e ninguém acreditou nos nossos esboços.
Encomendamos um look etéreo ao Anderson Neves e outro ao Diego Motta. O primeiro, um macacão dourado com sobreposição imensa de uma capa de seda + cetim (cerca de 20 metros de tecidos, compondo uma cauda majestosa), com uma gola mezzo vitoriana/mezzo Space Age no arremate. Coroando a rainha, um torso médio com dois tecidos entrelaçados, um branco e outro dourado no tom da roupa, também revisitando essa estética ancestral. Dessa vez, sem estruturas pesadas, tinha que ser orgânico, na base do moulage. Quem foi lá fazer, in loco, foi a Michelle Fernandes. E que bonito que foi! O outro look, um macacão branco com um torso mais alto, que ela revezaria nas gravações, ganhou ainda uma ombreira, quase um costeiro, também meio cyber. Diego e sua equipe foram os caras que ajudaram a materializar a pior – ou melhor – parte da nossa ideia de jerico: uma cabeça superdimensionada, presa pelo teto. Armou-se um engenho com uma mega estrutura de ferro, encapada por tela de galinheiro e coberta com cetim em ondas, compondo o torso. Quebrou na subida e precisou ser soldado. Tinha quase seis metros de altura e cerca de três metros de largura na parte mais alta. Foi fixado com cabos de aço bem rente à cabeça de Elza, dando a sensação de uma peça única. Um visual que evoca alguma realeza de outro tempo-espaço, mítico, quase alienígena, para uma Elza entronada no Divino. “Meu filho, isso não vai cair na minha cabeça não, né?”, brincou. Claro que não, Elzinha. Ela confiava na gente – e a gente nela.
Aquele visual imaculadamente branco, que o Fantástico transmitido no dia 23 de janeiro de 2022 chamou de “imagens que já entraram para a história da música popular brasileira”, também veio do futuro. Placas imensas de acrílico colorido, em formas geométricas, cada qual representando uma bandeira de Elza (igualdade de gênero, anti-racismo, espiritualidade, etc), compunham um imenso móbile retrô, uma galáxia inteira para a deusa. Foram executadas sob medida pela Acrilmarco (@acrilmarco), vieram de São Marcos, interior do Rio Grande do Sul, numa operação de guerra.
Na abertura do concerto, resolvemos antecipar a capa da POP-SE, em primeira mão, mesmo antes da publicação da revista. Foi a primeira ca
mada, o primeiro layer, o movimento inaugural do show. Uma membrana suave que subia para revelar A Mulher do Fim do Mundo em seu ato final. Seu legado, sua história, são tão infinitos quanto ela.
Nenhuma outra cantora da história tem uma biografia tão densa, tensa e intensa quanto a de elza
Do Gênesis ao Apocalipse
Deus é mulher. E é a mulher do fim do mundo, como Elza documentou em seus dois últimos álbuns, premiadíssimos e super projetados dentro e fora do país.
Rebobinando alguns metros de fita, minha história com essa mulher-obelisco começou mais de duas décadas atrás, época da universidade, por conta do TCC de Jornalismo. Àquela altura interessadíssimo em cultura e sociologia, escrevi um livro-reportagem com um recorte bastante inusitado para a banca julgadora da época: Cantoras Negras Brasileiras. Não tirei o tema da cartola. Antes de ser aspirante à foca, na segunda metade dos anos 90, era rato das programações gratuitas e/ou baratinhas de concertos e exposições de São Paulo, sobretudo daquilo que rolava no Memorial da América Latina. Pegava o metrô na estação Jabaquara e 20 minutos depois desembarcava na cara do gol, na Barra Funda. Vi desde Milton Nascimento a Mercedes Sosa sob aquela imensa bolha de concreto armado “circuncidada” por Niemeyer. Mas o espetáculo mais emblemático, que me custou populares R$ 2 (pouco mais do que a tarifa da passagem na época) foi um chamado Cantoras Negras Brasileiras Reunidas. Numa era pré-pop com Izas e Ludmillas, lá estavam Elza, Dona Ivone Lara, Alaíde Costa, Virginia Rodrigues, Carmem Costa, Daúde, Sandra de Sá, Jovelina Pérola Negra, Leci Brandão, Zezé Motta, Rosa Maria Colin, Adiel, Áurea Martins, Martinália, Margareth Menezes, Angela Regina, A Quatro Vozes, Mariúsa e Simone Moreno sob regência de Sônia Campos. Ausência mais sentida, Alcione batera na trave, conforme noticiou-se na época. Ainda assim, foi impactante e simbólico demais para mim, habituado a cultuar as grandes divas da música norte-americana (todas negras), lidar com aquele elenco parcialmente desconhecido – apenas 30% delas eram figuras midiáticas. Algumas percepções antropológicas já bagunçavam a cabeça de quem não estava ali só pra sacudir o esqueleto. Mesmo num país em que a população esmagadora era caucasiana (nos EUA, apenas cerca de 13% da população é composta por afrodescendentes), a música popular se fez muito mais de Bessies, Billies, Ellas, Saras e Arethas do que de Barbras. Por aqui, historicamente, mesmo com cerca de 55% da população negra, os maiores cartazes do nosso panteão sempre orbitaram ao redor de Carmen Miranda, Isaurinha Garcia, Maysa, Elis, Gal, Bethânia e por aí vai (excetuando uma Elizeth Cardoso aqui e uma embranquecida Ângela Maria acolá).
Entrevistaria Elza Soares anos depois do concerto em que cantou sua clássica Meu Guri, para esse livro. E inúmeras outras vezes, já na condição de jornalista. Houve também os encontros casuais. Rosana, amiga a quem eu acompanhava no Prêmio da Música Brasileira, Rosa Maria Collin e eu, passamos boa parte da festa bebericando e papeando com Elza.
Quando lancei minha primeira revista em voo quase solo, a GIZ, em 2016, batalhei muito para emplacar uma capa com Elza, numa produção ousadíssima de execução complexa, que causou brigas internas com a sócia, com o fotógrafo e com meio mundo – desenhamos para ela a primeira rainha nagô surrealista, com mais de um metro de cabeça e uma roupa de 25 metros de extensão. No final, o trabalho se tornaria uma de suas fotos mais reverberadas. Virou tatuagem. Era a verdadeira envergadura da artista.
Eu, metido a connoisseur de divas, jamais soube de outra com a biografia e a garganta de Elza – o papa do jazz Louis Armstrong dizia que ela tinha uma corda vocal a mais. Nem Bessie, nem Billie, que apanhavam antes de subir no palco e não podiam se hospedar nos mesmos hotéis que os seus músicos brancos. Nem Ella, nem Sarah, que além da pobreza e da violência extremas, penaram quilômetros e litros em cruzadas contra o álcool e as drogas. Nem Nina, bipolar, que vivia com a polícia na cola. Nem Aretha nem Tina, espancadas por seus homens em saguões de hotel ou, ainda pior, estupradas no estúdio.
Ao contrário delas todas, Elzinha não aprendeu a cantar indo à igreja e jamais teve seu talento minimamente estimulado. Criou seus improvisos jazzísticos carregando pesadas latas d’água na cabeça que lhe atarracavam ainda mais o corpo franzino pela miséria. Foi ridicularizada ao aparecer maltrapilha no Programa de Ary Barroso, que lhe perguntou de que planeta ela vinha. “Do Planeta Fome”, respondeu com a autoridade de quem já havia perdido dois rebentos para a desnutrição. Outros dois filhos morreriam mais tarde – o de Garrincha, o grande amor de sua vida, num trágico acidente. Ao assumir o romance com o craque, foi execrada pela opinião pública e apedrejada até o exílio. Mesmo ovacionada pela imprensa internacional, virou vilã. Do sucesso estratosférico despencou na vala da rejeição. Ruy Castro escreveu que ela passou a vida se mudando de endereço para não ser despejada – em nossos primeiros contatos, ela queixava-se que estava dura. Mas era mesmo Dura na Queda, como canta na música que Chico Buarque escreveu pra ela.
Tudo isso até girar outro looping (como o que Caetano lhe impulsionou nos anos 80, ao convidá-la para cantar Língua e arrancá-la de uma deprê pesada) e ter a dignidade resgatada outra vez, ainda mais prestigiada. Quando virou A Mulher do Fim do Mundo já contava mais de 80 anos. Viveu seus últimos tempos na glória do reconhecimento, mas nunca na zona de conforto. Trabalhou sem parar e assumiu um dos discursos políticos mais importantes do meio artístico e perpetuou-se planetariamente. Mesmo com a nossa proximidade, nunca a normatizei, nem nos retratos, nem na vida. E Elza vive. Agora, eterna e infinita.
@elzasoaresoficial