Presa pela ditadura militar junto com Lina Bo Bardi, Maria Bonomi, uma das nossas heroínas da resistência, aguarda a restauração de sua espetacular instalação Etnias – Do primeiro e sempre brasil, mais importante xilogravura nacional que faz uma ode aos povos indígenas nos subterrâneos do Memorial da América Latina
Texto_Leonor Amarante
Retrato_Salvador Cordaro
Resistir é estar no mundo. Maria Bonomi, uma das maiores artistas do País, aos 85 anos continua a movimentar-se sem jamais aderir a territórios conservadores. Em mais de seis décadas se notabiliza pelas ideias transgressoras, progressistas e por um trabalho artístico ímpar.
Gravadora, escultura, pintora, cenógrafa, Maria ao longo de mais de seis décadas se impôs frente a um sistema de arte machista que nunca a intimidou, nem mesmo quando foi presa pela ditadura militar junto com a arquiteta Lina Bo Bardi, o crítico de arte Alberto Beuttenmüller e outros, no mesmo período de Vladimir Herzog. Em seu ateliê paulistano, próximo à avenida Brasil, trabalha rodeada de obras de diversas épocas, mesas de impressão de xilogravura, serigrafia e metal, comprometida com novos projetos, exposições e palestras. A alegria de fazer se traduz em sua máxima: “Gravar é dançar dentro da imagem”.
Do intimista mundo da gravura, Maria rompe fronteiras e atinge ludicamente os espaços públicos com projetos espalhados por São Paulo. Entre os inúmeros trabalhos, Etnias – do primeiro e sempre Brasil, montado na entrada do Memorial da América Latina, é o que mais aproxima a artista do abismo entre a narrativa oficial e a verdadeira história do País. “Esse é um dos únicos trabalhos que coloca a questão indígena, visual e historicamente, dentro da realidade dos fatos”. Maria pertence a um grupo de artistas que propõem modificar a percepção da arte com questionamentos sobre a história oficial de seus países. De origem italiana e naturalizada brasileira, a artista mesmo antes de fugir da guerra e vir para o Brasil com a família ouvia seu pai dizer que os índios eram os verdadeiros donos deste País. “Quando tinha dez anos, já em São Paulo, fiz meu primeiro desenho tendo os índios como tema. Eu era então aluna do tradicional colégio Des Oiseaux ”.
Etnias reafirma o gosto de Bonomi pela história, respeito aos povos indígenas e pela contestação. Faz o visitante mergulhar no “espetáculo” interativo multiplicando seus deslocamentos e percepções, levando-o naturalmente para a história de cada peça. O ambiente provoca uma varredura do campo de visão sobre painéis e esculturas. Observadas de qualquer ângulo, as peças ali reunidas ganham vida pela diversidade dos materiais. As esculturas em argila evocam as origens dos povos indígenas, a mata, pinturas rupestres; em bronze elas se remetem à chegada dos colonizadores, com caravelas, fortalezas, missões e as placas em alumínio revelam a presença indígena na contemporaneidade. A persistência nessas relações artísticas e antropológicas nasceu no ateliê que Maria montou no subsolo da galeria Marta Traba, do Memorial, onde trabalharam cerca de 70 pessoas, entre artistas, estudantes de arte e indígenas como Cacique Timóteo da Silva Verá Pontyguá – Aldeia Krukutu (Parelheiros); Cacique Lísio Kuaray Ropeju Mirim Lima – Aldeia Tonondé-Porã (Parelheiros); Cacique Yaguaré Yamã – Amazônia.
Etnias cria combinações de linhas, ângulos, justaposições, planos para uma história que se inicia com a “invasão” do Brasil pelos portugueses, como dizem os indígenas que trabalharam com ela. As imagens simulam a natureza, o imaginário, o simbólico. “Alguns desses indígenas converteram-se em autores deles mesmos. Os guaranis de Parelheiros, por exemplo, trabalharam em placas de alumínio a situação degradante de sua aldeia nesse bairro paulistano invadido pelo mercado imobiliário”. A discussão sobre a opacidade da cultura indígena chega aos painéis e se junta a outras minorias como os “candangos”, primeiros moradores que construíram Brasília e aos nordestinos, muitos dos quais morreram nos canteiros de obra. Também está em cena a chegada dos colonizadores com seus instrumentos de ações “apaziguadoras” dos nativos, como armas de fogo, chicotes, varas, missões jesuíticas.
O conjunto de obras ressignifica elementos étnicos, antropológicos e sociais e desafia uma história obscura ainda não suficientemente estudada. Oscar Niemeyer, que assina o projeto arquitetônico do Memorial e defensor da causa indígena, foi quem convidou Maria para realizar a obra. “Todo o desenvolvimento do projeto se apoia no relato dos livros e documentos selecionados pelo antropólogo Darcy Ribeiro, que trabalhou durante anos com Niemeyer“.
A obra consumiu quinze toneladas de materiais e em 2017 sofreu infiltrações por falta de manutenção de gestões passadas do Memorial. “O estrago atingiu paredes, teto, espelhos e colocou em risco os visitantes. A produtora Maria Helena Peres, companheira de Maria e responsável pela logística e produção da instalação, enviou ao Condephaat e ao Conprest um projeto de restauração e obteve aprovação unânime nos dois órgãos. Com isso iniciou o processo de captação de recursos para recuperar o espaço físico do ambiente. “Na restauração está prevista a Praça Darcy Ribeiro, espaço lúdico, com bancos e jardins, incorporada ao trabalho”, comenta Maria. Com essa obra o Memorial se alinha na defesa internacional do meio ambiente e dos povos indígenas.


