EDITORIAL
O MEME E O GENE
Neste mundo em que nascemos, a gente leva um tempo até entender que determinadas naturalidades são absolutamente anti-naturais. Na maioria dos casos, nem uma vida inteira é o suficiente para que a pessoa localize e neutralize os memes que herdou da sociedade à sua volta. E não estamos falando daquelas fotos ou gifs com textos engraçadinhos que engarrafam o admirável mundo digital e fazem a gente rir da própria desgraça enquanto o planeta-circo pega fogo – literalmente. A palavra meme, em sua origem etimológica, foi criada pelo escritor Richard Dawkins, etnólogo/biólogo inglês autor de livros como seu polêmico “Deus, um delírio” (The God Delusion, 2006). Antes, em 1976, quando lançou a icônica obra “O Gene Egoísta”, ele cunhou o termo meme, que seria para a memória o equivalente ao gene na genética – unidade mínima para medir as nossas lembranças. Um meme pode ser, portanto, uma ideia (ou um pedaço de uma ideia), um som, um símbolo, um valor estético ou moral – qualquer coisa que possa ser aprendida com facilidade e transmitida adiante. Do mesmo modo que herdamos de nossos pais genes que definem fenotipicamente atributos físicos como as cores dos nossos olhos ou a textura dos cabelos (quando não determinam a queda de todos os fios), também somos conduítes das memórias do passado que nos foram passadas. Um meme é, portanto, um replicador comportamental – o eco de uma recordação. Há memes que são lindos, essenciais. Outros, perturbadores. O meme da vingança é um. O desígnio da cor azul para meninos e do cor-de-rosa para meninas é outro: lembrança cultural que estabelece com matizes que são naturalmente assexuados um entendimento limítrofe e distorcido sobre gênero (tema da nossa POP-SE #2, com Pabllo Vittar que nos rendeu premiações importantes como a Bienal Conlatingraf, Prêmio Paulista, Brasil Design Award, Society of Publication Designers). Entre os muitos memes que engatilham comportamentos tenebrosos, citamos o racismo. Enraizado nas estruturas da contemporaneidade, é derivado de ene fatores, todos ligados à transmissão de valores e perpetuação de convenções que visam apenas beneficiar a civilização branca. Nós, Allex e André, somos brancos – e no jogo da imitação temos vergonha de mimetizar/reproduzir uma série de códigos racistas caros à nossa cultura. Até por meio do idioma, no uso cotidiano de palavras como “lista negra”, “magia negra”, “mercado negro”, “ovelha negra”, “inveja branca”, “denegrir”, “cabelo ruim”. O idioma é um furtivo açoite diário. Quem é branco não nasce racista, mas é de pronto e sistematicamente doutrinado a pulverizar as sementes do racismo por onde quer que vá. Nesta edição, embora não se trate de uma temática pontual em nossas trajetórias, mas sim constante – além de debatermos o assunto cotidianamente e em todas as publicações que criamos/editamos, temos uma equipe há anos chefiada por uma mulher negra, Ana Paula de Assis (editora-chefe), e um homem negro, Zé Renato Maia (diretor de arte e um dos criadores desse projeto gráfico) –, voltamos a abordar a ancestralidade, a diversidade, a representatividade. Inclusão requer ação. Estampada na capa + recheio, Iza eletriza quem vê o blow up em cores cítricas numa sutil desconstrução das nuances patrióticas que tingem nossa bandeira – e diga ao verde-louro desta flâmula: paz no futuro, mas precisamos rever esse passado. Nossos ídolos não são os mesmos – olha aí a Greta Thunberg: enquanto a adolescente sueca engatilha um youthquake global sem-precedentes, acionamos o fotógrafo Araquém Alcântara para escrever um texto-denúncia sobre as queimadas que ele acompanha na Floresta Amazônica. Reacendemos a memória de Marielle Franco, mulher, negra, pobre, gay, força político-humanista avassaladora, brutalmente assassinada, voz contínua que, como registra Elisa Lucinda em seu relato arrebatador/esclarecedor/comovente, nos “dandariza” a todos. Em Israel, os judeus excluídos que se organizaram à imagem e semelhança do Partido dos Panteras Negras norte-americanos, como forma de extrair o veneno que intoxica as crenças nossas de cada dia. “Saudade: este sentimento de vazio”, diria o escritor Machado de Assis (negro que levou a vida transfigurado e foi até sepultado como homem branco), um dos casos mais notórios de embranquecimento histórico. Leia também a dissertação da socióloga Flávia Rios sobre o colorismo: “Negros retintos” são mais amplamente aceitos no mundo branco. É a sedimentação simbólica da senzala, a perpetuação metafórica do pelourinho. E tem muito mais. Nos recusamos a passar a herança racista adiante. Esterilizamos o meme. Faça o mesmo. Pense e repense antes de falar. A demolição do racismo estrutural – o racismo que funciona tal/qual sistema operacional – só acontece de dentro pra fora. Se você é branco, engula o seu privilégio, faça a digestão e regurgite sobre o mundo um novo eu: não basta só deixar de ser racista, precisamos ser anti-racistas.
Allex Colontonio + André Rodrigues
ESSA MENINA MULHER DA PELE PRETA
A cobertura jornalística de quase duas décadas perambulando pelos mais prestigiados veículos especializados do universo da arquitetura e do design sempre suscitou um questionamento perturbador em mim: onde estavam os arquitetos, os criativos, os designers ou os jornalistas negros como eu? A chave para esta resposta fundamenta o racismo estrutural. Como povo estigmatizado que somos até hoje percebe-se o trauma legado da escravidão que nos arremessou para a vala da marginalidade. É deste lugar, nas bordas da sociedade, que os nossos corpos são sempre objetificados e motivo de chacotas e piadinhas diversas. Sim, e nesta condição de ainda sermos a carne mais barata do mercado, tal como na canção vociferada por Elza Soares, causa estranheza aos não-pretos quando este grupo “minoritário” passa a acessar lugares que não o da servidão. Somos tratados e vistos como serviçais, seja na casa ou na cama, afinal de contas, atire a primeira pedra quem nunca ouviu comentários pejorativos (para nós) sobre mulheres ou homens negros serem ótimos amantes. As profissões e os espaços elitizados, por razões históricas, sempre foram ocupados e dominados pela branquitude. Esta por sua vez age com naturalidade em relação a este fato e parece não se importar ou querer fazer uma reflexão mais abrangente sobre sua condição de privilegiada. Tal situação diz muito sobre a problemática racial no Brasil estar bem distante de ser solucionada. É importante fazer o exercício de se colocar no lugar do outro e questionar o motivo por não encontrar colegas negros em pé de igualdade nos ambientes sociais que você frequenta. Já basta do discurso de se dizer zero racista e que até possui alguns amigos negros; ou que a empregada foi sua ex-babá e “quase” pertence à sua família. É preciso ir muito além de ser empático com a causa, se faz necessário o aprofundamento no debate em ações concretas. Não temos mais tempo para narrativas vazias. Chega de apontar o dedo em riste para dizer como devemos nos comportar; que nos vitimizamos ou ainda ter a arrogância de querer nos convencer sobre meritocracia e ditar o caminho a ser trilhado quando defendemos cotas raciais nas universidades ou nos cargos públicos. É importante deixar claro que não se trata de migalhas piedosas, e sim de política pública reparatória de um Estado que nos largou ao acaso após a abolição da escravatura em 1888. Para a negrada, o jogo não começou do mesmo ponto de partida que os brancos. Como mulher preta, que sofre na pele todos os dias os males do racismo, tive a sorte de me deparar na vida profissional e pessoal com Allex Colontonio e André Rodrigues. Personas brilhantes e sensíveis que sempre seguram a minha mão, me apoiam incondicionalmente e me defendem para que esta travessia seja menos exaustiva. Jamais vou esquecer quando, em certa ocasião, estávamos em um jantar de trabalho, numa cantina italiana tradicional, em Gramado, e foram eles que pularam na frente da bala e tiveram a sensibilidade de perceber e entender quando um garçom se recusou a me servir enquanto o restante dos comensais (mais ou menos 20 pessoas da chamada “elite”) fingiam nada acontecer. Estas e outras agressões diárias impostas pelo racismo e que chicoteiam com força a nossa face – e aqui não se trata de metáfora – ainda são vistas, lamentavelmente, como algo menor e passam despercebidas por quem não carrega a tez mais escura. As humilhações constantes persistem em nos desmerecer, nos aniquilar e nos exterminar mas seguimos, de cabeças erguidas, navegando contra a maré em busca de respeito pela nossa história: é só isso que queremos. Posso afirmar que a parceria na militância antirracista de Allex e André, na POP-SE e em outras redações que trabalhamos (quase sempre sob direção de arte de Zé Renato Maia, também negro), nunca foi da boca para fora, tampouco, vislumbrada como pauta para ficar “bem na fita” com a opinião pública – caso de alguns títulos ainda operantes no famigerado sistema Casa Grande e Senzala. Desta vez, os meninos me incumbiram de arquitetar matérias com abordagens mais densas e pouco discutidas nos impressos de maneira geral. Registro aqui agradecimento especial para Elisa Lucinda, Jefferson Belarmino de Freitas e Flavia Rios, esses colaboradores aguerridos emprestaram suas expertises em narrativas lúcidas sobre o mote em questão. Outro desafio foi fazer e acontecer para termos a Iza, a diva negra todo-poderosa, clicada pelas lentes do talentoso fotógrafo Victor Affaro. Alguns probleminhas no meio do caminho (nos bastidores nem sempre tudo é perfeito) não tiraram o brilho do ensaio de capa que orgulhosamente apresento a vocês nas páginas seguintes. Espero que gostem desse conteúdo preparado com tanto carinho para vocês. Boa leitura!
Ana Paula de Assis