Elétrica, cromática, Polêmica, autêntica e original nas versões analógica e digital
Passava do meio-dia quando Pabllo Vittar chegou ao estúdio naquela terça-feira quente de março. Desmontada e esbaforida, com fones de ouvido desses agigantados que pareciam um capacete bombando ondas sonoras ao ponto de a gente sentir a vibe do bate-estaca que fluía deles, “óclãos” escuros (daqueles que sacamos do bolso/da bolsa antes do after) e um boné cuja aba parecia um trampolim de saltos ornamentais que chegava a comprometer seu campo de visão (ela quase trombou na porta de entrada), está visivelmente cansada – outro tanto, quiçá, entediada. Pergunta, ansiosa, “cadê o meu camarim?”, enquanto dispara em rota de fuga para, inadvertidamente, invadir a cozinha, onde, imaginou, ficaria a sua sala reservada. Todavia, não ancora presença: com Pabllo é “oi” e “tchau”– see you when I see you. Num pivô, ela dá meia volta para escapar do fumacê dos ingredientes que temperam o catering que encomendamos, e, mais fugaz do que o tempo de duração de um dos seus Stories, desmaterializa, desta vez, para seu alívio, camarim adentro. A porta se fecha e o empresário manda avisar que “a Pabllo precisa de umas três horas antes de falar com o pessoal da revista”. Lembramos das drags inaugurais do underground paulistano que acompanhamos em sagas do tipo épicas em noites sem fim – de Marcinha a Marcia Pantera, passando por Silvetty Montilla, Thalia Bombinha, Brenda e Rafaella. Já havíamos topado com drags que levam até quatro horas orando para Nossa Sra. do Make Up. Alguns à nossa volta interpretam o gesto da artista como arrogância, outros, timidez + cansaço (ficamos com essa segunda hipótese, afinal, conhecemos bem os dissabores do showbiz – o glamour é só na foto, gente, porque por trás de toda celebrity rola muita ralação). Junto com Pabllo segue uma turma teen composta por uma dezena de indivíduos que não desgrudam dela por nada nessa vida – eles/elas caminham fazendo passinhos de “vogue” (com a Netflix abrindo cada vez mais sua programação para a diversidade, ficou fácil beber até cair na fonte de “Paris is Burning” – filme-documentário dos anos 1990 dirigido/escrito por Jennie Livingston e gravado em diferentes fases da década de 1980, que retrata uma fatia particular da comunidade LGBT na cidade de Nova York: os clubes e dançarinos de “vogue”, estilo coreográfico que consiste numa espécie de batalha com passos acrobáticos. Para fins de curiosidade: foi nessa referência que Madonna colheu a inspiração para seu über hit “Vogue”). A trupe completa é formada por empresário, produtores, maquiadores, stylists e assistentes. Gente jovem/empoderada como Pabllo, que decolou feito míssil teleguiado até a estratosfera com um smartphone numa mão e um arsenal de filtros e efeitos digitais na outra. Pabllo se serve bem da máquina, com uma agenda intensa de shootings profissionais para sites, revistas, programas de tv (desde que não sejam na Record, emissora do bispo Edir Macedo, onde não passa nem zapeando o controle remoto na madrugada). A maior parcela das imagens que você vê em seu feed (@pabllovittar) é feita por um dos seus assistentes. Quanto ela ganha por um post? “Pink money robusto”, corre à boca pequena que tem língua solta. Seu contato direto e reto com o público final é gerenciado por ela própria, sem intermediários, com uma audiência avassaladora e altamente engajada (8,5 milhões de followers até o fechamento desta edição – e contando). Mais do que estética, sua presença on-line é mesmerizante e elusiva. Em algumas fotos, aparece tão bem manipulada pelas plásticas digitais que fica impossível enxergar o limiar que separa virtualidade de realidade. Pabllo Avattar. Mas, pessoalmente, devemos dizer: ela é ainda mais linda. A transfiguração de PV estilhaça gêneros e habita um lugar que não é físico, e sim metafísico – ou metafórico. Sua existência, em si, é um ato de resistência que nós aplaudimos de pé. Ela nos representa. Esse allure visual que derrete os olhos de quem vê é o real x-factor da dançarina. Seu canto mais afinado emana do discurso embutido em sua imagem meticulosamente esculpida para detonar com o status quo e desintegrar establishments. A gente olha para ela e vê uma personagem contemporânea, a metonímia comportamental das novas gerações – a parte que representa o todo –, algo totalmente pronto para ser desejado, feito sob medida para os dias de hoje. Pabllo é a materialização do zeitgeist. Parece uma boneca que acabou de descer da prateleira. “Ela não parece uma boneca – ela é uma boneca”, afere um dos assistentes. “Yaaaas! Work it! She deliiiiversssss, honey!”, grita outro/outra lá do fundão (a essa altura nossa leoa-de-chácara Mayra Ometto, produtora extraordinária que guarda uma estatueta do Oscar na estante – conquistado em 2015, por “Olhando para as Estrelas” –, já havia gentilmente expulsado boa parte do excesso de contingente que se acotovelava no estúdio – mesmo assim, a tchurma toda permaneceu na órbita, como se estivessem no gargarejo de um show da Beyoncé com participação especial de Ariana Grande + Madonna no estádio de Wimbledon). O inglês segue galopando com essa e aquela frase extraída do reality show “Ru Paul’s Drag Race”, programa de TV norte-americano que mapeou as drags no mundo atual e reacendeu a carreira delas e de seu criador, o californiano RuPaul Andre Charles. Há um momento do dia em que tudo o que ouvimos no set de fotografia são línguas estalando contra o céu da boca: cacoete lançado durante uma das temporadas de RPDG pela divertidíssima Alyssa Edwards. Todas essas referências estão ali, condensadas no “liquidificadoido” dessa gente “xóvem” brasileira que cresceu nutrida à base de entretenimento + cultura pop tipo importação. Haja fartura. Pabllo se refestela, digere, regurgita e, tal e qual seu mega hit, “não para, não”. Nem por um minuto.
Você precisa se libertar de posturas culturais e ser você mesmo, livre,
sem qualquer amarra
E aqui vai mais um elogio ao seu profissionalismo: quando chegou ao nosso ensaio, ela acabara de sair de uma outra sessão em que teve que acordar às 6:00 e já estava no segundo job do dia (detalhe: trabalho este não remunerado, pois revistas, coitadinhas da gente, caso você não saiba, não pagam cachê para os personagens). Antes disso, praticamente emendou uma maratona de mais de 20 shows de Carnaval e, às vésperas de viajar para Nova York e tirar seu merecido descanso, ainda nem tinha voltado para casa – na verdade, ela iria mesmo trampar, já que sua turnê atingiu México, Estados Unidos e Portugal. Mesmo exausta, foi impecável no cumprimento da agenda conosco, negociada meses antes. A capa dessa edição, pra variar, demandara uma operação de guerra – estúdio super equipado, luz de cinema, quase 50 looks de moda, tapadeiras para sobreposição de cenas nas cores rosa e azul, num manifesto contra o depoimento da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. “Menino veste azul, menina veste rosa”. Damares também afirmou, em abril de 2019, que, “dentro de sua concepção”, a mulher deve viver submissa ao homem. “O homem é o líder”, estabeleceu. Fica definido para quem aí elegeu esse governo: mulheres, curvem-se aos homens. Cruzes!
Inicialmente, este ensaio seria estrelado por Pabllo e por outra über celebridade “X” que, devido a um problema pessoal incontornável e extremamente compreensível, acabou furando com a gente aos 45 do segundo tempo. Não foi a primeira vez que perdemos o chão e tivemos que aprender a levitar pra não cair na vala. Mas, como somos eternamente inconformados, arrancamos outra ideia maluca da cachola. Pabllo foi generosa e topou a novidade, sem a antagonista. Encarou a sequência mais prolixa de fotos de sua ainda tenra, mas super intensa carreira, com conceito adaptado em tempo real – quase como os lives que ela sobe em sua conta. Não desistimos fácil das ideias e da narrativa por trás da imagem – não ter conteúdo e coerência seria colocar em risco todo o nosso trabalho até hoje. Daí resolvemos manter a dobradinha da capa, só que estrelada por ela mesma, nas duas estéticas, tipo Victor/Victoria (história fictícia que acontece na Paris de 1934, em que Victoria Grant é uma cantora lírica desempregada que conhece Carroll Todd, um cantor gay também chorando miséria – juntos, articulam um plano, no qual ela se faz passar por um homem). Na era das fake news, das fake fotos, das fake people e até dos fake presidents, talvez você imagine que seja fácil assumir uma montagem Photoshopianesca dessas. Pois não é. Para atingir o efeito desejado, tivemos que contratar um modelo-dublê com a estatura e o biótipo exatos da Pabllo (que mede raríssimos 1,87 m). O movimento da mão esquerda de um deveria dar match matemático com a mão esquerda de outro – como se fossem doppelgängers. As veias sobressalentes e a contração dos músculos de pernas e braços, o caimento da roupa, o movimento da luz e das sombras lambendo o rosto de cada um. E o Marcelo Calenda, é claro, diretor de arte e nosso retoucher predileto, com currículo que inclui até cursos de anatomia, entrou em cena para amalgamar os melhores pedacinhos de cada registro, feito aqueles quebra-cabeças de 5 mil peças que a molecada-crânio da era offline costumava passar meses montando (hoje jogam o que? A gente aqui parou em Farmville e nem começamos Candy Crush…). Pabllo é praticamente uma CGI (computer graphic imagery) e, arriscamos provocar, ela deveria ganhar um filtro/efeito do Instagram para chamar de seu – coisa que já aconteceu com Rihanna, por exemplo. “Você não tem o filtro Angels, da Loren…”, lamenta Pabllo ao tomar nosso celular pra fazer um vídeo-selfie da nossa chamadinha “POP-SE JÁ!” ao fim do shooting. Loren Gray, para você que nunca ouviu falar nela, tem 16 anos de idade, é norte-americana, cantora e “YouTuber” com mais de 16 milhões de seguidores. Desapontada com a escassez de efeitos no Instagram do André, Pabllo procura rapidamente qualquer filtro que seja (com unhas maiores que as da Alcione, que fazem um cleck-cleck ao deslizar sobre a tela de vidro), estaciona na opção “Neon Frame”, que é uma moldura luminosa na cor púrpura e grava. “Ela gosta de luz estourada, do rosto bem iluminado e sem marcas de expressão”, alerta o assistente. “Se vocês deixarem ela linda, se ela curtir as fotos, pode ter certeza que vai publicar tudo – quando ela curte muito, posta até no feed”, barganha. Pabllo fala pouco. Sorri. Não conta vantangens. A essa altura todas/todos no estúdio já foram rendidos. O contexto que habita é este. Um veneno anti-monotonia.Para além de suas próprias fronteiras, fora do insta e “out of drag”, Pabllo é Phabullo. Mas, a real é que ela nunca sai do Instagram – a gente também não. Senta que lá vem Stories.
Sou eu mesmo, inteiro, humano, com feridas e lembranças boas, feliz com a minha história e sempre à procura de mais
O LABIRINTO DO PHABULLO
Nascido Phabullo Rodrigues da Silva, em São Luís, no Maranhão, em 1 de novembro de 1994, o garoto miscigenado, tímido, gorducho e de voz fininha frequentou aulas de balé clássico – atestando seu tino para a dança desde cedo. Sofreu toda sorte de bullying que este mundo heteronormativo, branco-racista, patriarcal-machista reserva aos “fora do padrão”, a exemplo dos gays – que também somos do lado de cá. Suas lamúrias pessoais são exatamente as mesmas, ou ao menos muito próximas, das nossas e das suas aí: por isso Phabullo é um phenômeno. Regra número um para avançar as casas no jogo do capital: o consumidor precisa se identificar com o produto que está consumindo. Se os problemas de Pabllo são como os meus, e se as suas alegrias são como as minhas, fica mais fácil adquirir o pacote completo. “A busca pela independência que abasteceu a carreira de drag queens famosas como Sylvester e Divine [nos anos 1970] não existe mais nos dias de hoje, visto que uma drag é capaz de ficar milionária só se apresentando para a base de fãs e seguidores que surfam na onda do RuPaul”, escreveu o jornalista Bryan O’Flynn ao jornal “The Guardian” em 6 de março de 2019. No título do artigo que cita Pabllo Vittar como uma das referências que pretendem atingir o público mais amplo com uma música “sem rótulos”, fica a pergunta: “Poderiam as drag queens se tornar pop stars?”. Dois anos antes, o mesmo jornal havia citado Vittar como ícone: “Num país onde 343 indivíduos LGBT são mortos por ano, a drag queen e cantora Pabllo Vittar se tornou um símbolo da resistência”. Essa outra reportagem, feita pelo correspondente Dom Phillips, direto do Rio de Janeiro, ainda remonta: “Quando as discussões sobre terapia para conversão de gênero atingiram o Brasil, Vittar tweetou para seus [então] mais de 600.000 seguidores: ‘Não estamos doentes’”.
Não é a música, sozinha, o elemento que converte Phabullo Rodrigues em Pabllo Vittar. “A cultura drag, tal e qual a bruxaria ou o xamanismo, desmascara as mentiras do mundo ao tirar sarro delas”, contextualizou a emblemática RuPaul ao jornalista Michael Schulman, do “New York Times”, numa entrevista realizada em fevereiro de 2014. Para RuPaul, a fama – assim como todos os demais aspectos sociais do mundo contemporâneo – são fruto daquilo que ela chama de “hoax” (boato ou mentira, em inglês). “Há dois tipos de pessoas no mundo. As pessoas que entendem que o sistema opera como uma espécie de Matrix; e as pessoas que aceitam e vivenciam o sistema como se fosse algo real”. Para ela, drag queens são capazes de expor e colocar em xeque as inverdades da civilização. “As drags sempre foram alvo fácil, porque as pessoas têm ressentimento de qualquer um que exponha a realidade dos fatos”. Rebobinando: em 1992, dois anos antes de Pabllo nascer, RuPaul tomou de assalto o planeta pop ao ocupar sistematicamente a programação da MTV com sua imagem drag. Não deu outra: até o Kurt Cobain, do Nirvana, declarou que a música da Ru, “Supermodel”, era uma de suas favoritas – isso acabaria desembocando numa das fotos mais inusitadas e emblemáticas de toda a história da indústria fonográfica: RuPaul segurando a chorosa bebê Frances Bean Bacon (filha de Cobain com Courtney Love) nos backstages do VMA em 1993.
Para o Dr. Michael Bronski, professor de estudos sobre gênero e sexualidade da Universidade de Harvard, “a dublagem das drag queens foi criada como uma maneira de parodiar gêneros”, ao que segue: “As drags escolhiam vocalistas femininas exageradas – Garland, Streisand, Aretha, Summer – porque essas mulheres já eram, por si só, hipérboles de diferentes estados emocionais de uma mulher. Quando uma drag dubla ‘you make me feel like a natural woman’ ela está levantando a questão: ‘o que exatamente seria uma mulher natural?’ É a cópia imitando a cópia do original”. Conforme as drag queens se tornam mais comerciais, elas se afastam gradativamente da paródia do gênero, o que, segundo Bronski, não significa necessariamente abrir mão de uma postura ativista-crítica. “Essas jovens não estão mais se escondendo atrás de roupas e maquiagens, mas sim abraçando a ideia de fluidez de gêneros. Não é algo melhor ou pior, só é algo profundamente diferente.” Brian O’Flynn, o entrevistador, conclui: “Para muitas drag queens, a música não representa muita coisa além de merchandise sonoro”. Talvez. Ele mesmo faz a mea culpa com nosso tesouro nacional: “Pabllo Vittar, uma drag queen independente e que nunca se afiliou ao programa da RuPaul, recebeu um disco de platina por seu álbum, que rendeu colaborações com Charli XCX e Major Lazer”. Tá bom? Não, porque faltou, é claro, a gente citar a Fergie e a Anitta – com quem Pabllo conheceu o deserto do Saara durante as gravações do clipe “Sua Cara” e acabou tendo uma discussão pública que arrefeceu a amizade entre as duas powerhouses da pop music nacional. Não tomamos partido. Como não amar ambas?
Não temos cor padrão, somos múltiplos, cheios de formas, humores, nuances
YUKÊ?
Foi no Triângulo Mineiro que o DJ Rodrigo Gorky conheceu Pabllo e os empresários Ian Hayashi e Leocádio Rezende (a quem a maranhense chama carinhosamente de “pais”), produtores da balada Belgrano. Gorky realizou que, mesmo muito crua, a drag poderia dar samba – axé, pop, tecnobrega ou seja lá qual for o ritmo da hora. Depois de lançar o single e clipe de “Open Bar”, uma versão brasileira da música “Lean On”, de Major Lazer, em outubro de 2015, PV viu seu nome ganhar destaque nas baladas LGBT Brasil afora. Detalhe: o clipe foi gravado na casa de um amigo com um budget de R$ 600 (sim, seiscentos reais). O investimento foi baixo para o resultado astronômico: o vídeo teve mais de um milhão de visualizações no YouTube em menos de quatro meses.
Pabllo já morou nas cidades de Santa Inês e Caxias, no Maranhão, e em Belém, no Pará, destinos díspares que foram os responsáveis pela forte influência do forró e carimbó contidos em suas músicas. Em Caxias, ela começou sua carreira como Pabllo Knowles – será que ela é fã da Beyoncé? – e se apresentava fazendo covers em um programa de TV regional chamado, vejam vocês, POP. Aos 16, foi tentar a vida em São Paulo, mas acabou não acontecendo e teve de se virar – foi cabeleireiro, funcionário de rede de fast-food e atendente de telemarketing. Pabllo se mudou com a família para Uberlândia, por ocasião do casamento da sua mãe, a técnica de enfermagem Verônica Rodrigues, e nunca teve contato com seu pai biológico – que abandonou sua progenitora ainda grávida dele e de sua irmã gêmea, Phamella Rodrigues. Como milhões de outras mulheres, Verônica teve que se desdobrar e cortar um dobrado para cuidar dos três filhos (a terceira se chama Pollyana Rodrigues e é um ano mais velha do que os irmãos). Pabllo só foi ter noção de que drag queen era uma arte acessível quando começou a assistir, por indicação de um ex-namorado, ao reality “RuPaul’s Drag Race”.
Convidada para participar de uma das temporadas do programa Amor & Sexo, comandado pela Fernanda Lima, na TV Globo, a dançarina emocionou o Brasil com sua trajetória de vida e carisma. Poucos sabem, mas ela teve de trancar o curso de Design de Interiores na Universidade Federal de Uberlândia.
Vittar lançou seu primeiro álbum independente em janeiro de 2017, sendo ele bem recebido pela crítica musical e com participações de Mateus Carrilho (ex-vocalista da Banda Uó), Rico Dalasam, Diplo, Laura Taylor e Lia Clark. O disco trouxe alguns recordes para Pabllo e fez dela a drag queen mais ouvida de todo o mundo. O segundo hit a estourar foi “Todo dia”, canção feita especialmente para virar febre no carnaval, e virou.
A música já nasceu hit-carro-chefe em muitos blocos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Mas, como nem tudo são flores, o som também trouxe um pouco de dor de cabeça e inimizades. O compositor da letra, Rico Dalasam, mandou uma notificação extrajudicial para questionar o acordo de direitos autorais e interpretação, alegando não receber participações nos lucros. O videoclipe e a música que já acumulavam mais de 50 milhões de visualizações no YouTube (e outros tantos milhões de streamings) foram retirados do ar.
Entre o primeiro e segundo disco, a cantora ganhou um programa chamado “Prazer, Pabllo Vittar”, no canal Multishow, no qual ela abordou diversas situações de sua vida profissional e pessoal; e um documentário na Apple Music. As participações em músicas de outros artistas também bombaram. Lucas Lucco, Luan Santana, Alice Caymmi e Simone & Simaria já dividiram os vocais com a drag.
O segundo disco intitulado “Não Para Não” foi lançado em outubro de 2018 e, dessa vez, saiu pela gravadora Sony. Bateu recordes no Spotify, com todas as músicas entre as 50 mais ouvidas. Vittar também conquistou o primeiro lugar no Trending Topics Mundial do Twitter e conseguiu o certificado de Platina com o videoclipe de “Problema Seu”, primeiro single do álbum, com mais de 41 milhões de visualizações. O segundo clipe lançado, “Disk Me”, foi na mesma linha e atingiu 7 milhões de views em três dias de lançamento (hoje tem mais de 46 milhões), e foi o primeiro entre os Trending Videos do YouTube à época.
POP-SE: Quando você decidiu que se tornaria cantora? Quais foram as maiores pedras no caminho?
Pabllo Vittar: Desde criança sempre tive muitas influências de música na minha casa. Minha mãe sempre adorou a magia que as canções possuem e passou esse sentimento para mim. Whitney Houston, Aretha Franklin, Donna Summer e Etta James eram alguns dos nomes que eu mais ouvia quando pequeno. No começo, era apenas um hobby, mas aos poucos essa paixão tomou conta de mim. Com 13 anos, comecei a cantar em um coral de igreja e rascunhava minhas primeiras composições. Cantei também em um programa regional de Caxias, onde fazia alguns covers. Depois, comecei a me apresentar em casas noturnas, em Uberlândia. Ali, de fato, tudo começou. Sobre pedras no caminho, com certeza, a maior foi o preconceito que recebi e recebo. Não foi fácil e ainda não é, mas hoje me sinto mais forte e pronto para enfrentar tudo de frente. Me sinto parte de algo maior, e luto não só por mim, mas por todos que represento. Não sinto mais medo, sinto coragem, tenho orgulho do que eu sou, da minha essência e da história que estou construindo. Só quero que todos caminhem comigo e que ninguém abaixe a cabeça para o intolerante, para o preconceituoso e arcaico. Que sejamos o que somos, verdadeiramente.
P: Sua mãe disse que, ao assistir Open Bar pela primeira vez, soube que você iria brilhar. O que significa para uma criança gay ter esse apoio dentro e fora de casa?
PV: Significa tudo. A importância que esse carinho, força e amparo possuem, não consigo te dizer em palavras. Eu só tenho a agradecer pelo apoio que recebi da minha mãe, ela foi meu maior alicerce em todos os momentos da minha vida. Sempre estava ali presente, me encorajando, me aplaudindo. Rindo ou chorando, era a figura dela que eu via ao meu lado. Para uma criança e para um jovem gay, ter o apoio e amor da família é importante demais. De todos os lados, só vemos ódio e preconceito com o que é diferente do padrão. Olhar para seus pais e ver neles amor e respeito, fortifica e te dá coragem de enfrentar qualquer barreira.
P: Você começou a entrar no mundo drag aos 17 anos. O que ser drag significava naquela época e o que significa para você hoje?
PV: O significado de ser drag não mudou para mim ao longo dos tempos, ele só solidificou e se fortaleceu. Com o passar dos anos, só enxerguei cada vez mais meu espaço de luta e de direito. Hoje batalho por igualdade e pela liberdade de ser quem eu sou. E sabe o que eu sou? Um homem gay, que faz uma drag queen. Não sou uma mulher, mas quando me visto como uma, me enxergo como tal. Não ligo se me chamarem de ele ou ela, quando estou vestida com roupas do meu dia a dia. Mas, quando me monto, só aceito e respondo por ela. Todo trabalho que tenho para ficar produzida e me chamam de ele? Não da né? Rs
P: Lidar com críticas negativas e ódio ainda faz (grande) parte da experiência online. Ao mesmo tempo, a internet é uma maneira de se conectar com o mundo e, como você fez, com milhões de pessoas. Qual é o papel que a web tem na sua carreira?
PV: A internet tem um papel muito importante hoje na nossa comunicação. Vivemos conectados e menosprezar isso não dá. Como tudo na vida, possui pontos bons e pontos ruins. Para minha carreira, a internet sempre abriu portas, me aproximou do público e trouxe a chance de eu mostrar meu trabalho para um número incansável de pessoas. Nunca conseguiria atingir tanta gente com os meios tradicionais de divulgação. Mas também tive muitos momentos tristes nas redes. O preconceito sem rosto dói tanto quanto o feito cara a cara. É difícil no começo, muita gente apontando dedos, comentando coisas, isso assusta. Mas sempre procurei lidar de forma construtiva ali. Só agreguei na minha vida o que foi positivo e que me ensinou. Ódio, raiva, preconceito, eu tive momentos de impor meu posicionamento, e tive outros nos quais eu apenas observei sem acreditar. É difícil pensar que as pessoas hoje nas redes buscam pelo fracasso, pregam ódio e esquecem que você é um ser humano com sentimentos. Acho que meu trabalho fala por mim e a melhor forma de resposta é reforçar a força do público LGBTQI+, sua importância e seu poder. Nada nos impedirá de ser o que somos.
P: Se pudesse mudar algo em você, o que seria?
PV: Não sinto a necessidade de fazer mudanças em meu corpo. Quem sabe apenas a cor dos cabelos ou do esmalte? Nada mais. Sou eu mesmo, inteiro, humano, com feridas e lembranças boas, feliz com minha história e sempre a procura de mais.
P: Você já morou em diversas partes do Brasil – Maranhão, Pará, Minhas Gerais, São Paulo. Como essa vivência informa quem você é e seu estilo musical hoje?
PV: Toda essa vivência só contribuiu para que eu formasse meu estilo musical, a partir de diversas referências. De cada região, retirei um pouco de inspiração e pude compor minhas músicas com toda a minha verdade. Canto o que me faz feliz e não me prendo apenas a um estilo. Acho que hoje nós, enquanto artistas, precisamos mostrar nossa versatilidade e caminhar por diversos espaços, experimentando coisas novas e se permitindo, sabe?
P: E onde você sonha descansar um dia? Existe alguma viagem-fetiche que você queira programar?
PV: Adoro viajar, conhecer lugares, culturas, pessoas. É sempre uma experiência marcante. Tenho algumas que quero muito fazer, mas tudo no seu tempo. Mas, além de sair por aí turistando, gosto muito de ficar em casa, curtindo a calmaria com minha família. Sou muito tranquila, prezo demais pelas minhas raízes.
P: Quais artistas você acha injustiçados no Brasil?
PV: Não vejo como artistas injustiçados, mas acho que ainda falta espaço e incentivo para os artistas LGBTQI+s no espaço da música. Temos tantos talentos a espera de uma oportunidade, de uma chance de mostrar o que sabe fazer. Mas, infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade estereotipada e preconceituosa. De forma geral, acho que o cenário musical é bom e vive um processo crescente, com um leque cada vez maior entre gêneros, mas ainda acho que alguns artistas e alguns estilos musicais sofrem na hora de conseguir visibilidade e notoriedade.
P: Como é a sua conexão com a moda? Você compra muitas roupas?
PV: Eu nunca fui uma pessoa muito consumista, mas sempre adorei moda. As peças, cores, modelos, texturas, tudo me encantava. Mas sempre fiz a minha moda particular, sempre usei o que ficava bem em mim, o que me fazia sentir bem.
P: Qual foi o show mais inesquecível que já fez?
PV: Tive diversos shows marcantes. É difícil escolher um, mas posso citar o Rock in Rio em 2017. Cantar ao lado da Fergie foi inesquecível.
P: Qual a situação mais constrangedora que encarou no meio artístico até hoje?
PV: Enfrentei preconceito, muitas vezes. Não vejo apenas como constrangedor, mas ultrajante. Eu nunca vou me conformar com a naturalidade que as pessoas diferem um ser do outro. É um ato tão comum para tanta gente que indigna.
P: E ainda lembrando do mote do ensaio… Menino veste azul e menina veste rosa? Qual a cor preferida da Pabllo?
PV: A cor que te faz feliz, única e insubstituível. Não temos cor padrão, somos múltiplos, cheios de formas, humores, nuances. Somos mais do que possam dizer.
P: Quem é sexy para você?
PV: Olha, difícil falar só um hein! Hahaha. Mas no momento, estou achando sexy apenas meu homem rs.
P: Se pudesse mudar algo no Brasil hoje, o que mudaria?
PV: Desigualdade social, violência e intolerância ao diferente.
P: Você é ícone de representatividade e aceitação para um gigante número de brasileiros – gays, drags, travestis, nordestinos, entre muitos outros. Isso carrega alguma responsabilidade para você?
PV: Sim, carrega uma responsabilidade muito grande e que significa demais para mim. Eu cresci sem ter exemplos próximos de artistas gays, drags e trans. Ney Matogrosso era uma referência, mas muito distinta da minha realidade. Então hoje ser um exemplo, ser uma inspiração, é especial, mas exige gratidão, respeito, seriedade, luta e consciência. Sei do meu espaço, mas do que adianta estar sozinho nele, sem a comunidade que represento e que precisa ser ouvida. Do que adianta? É uma luta coletiva e pulsante. Represento e sonho por muitos.
P: O Brasil é o país mais violento para pessoas LGBTQI+. Ao mesmo tempo, tem uma das cenas culturais mais vibrantes do mundo – você é prova disso. Como lida com participar desses dois lados ao mesmo tempo?
PV: De um lado, uma tristeza enorme e sem precedentes por tanta violência, pregação de ódio e intolerância com uma comunidade que só luta por seu espaço. De outro, vejo com esperança e amor a possibilidade que tenho de mostrar para o mundo o que sou, o que todos nós somos, o quanto é belo, singular e verdadeiro.
Enxergo como um papel social de um cidadão que só quer assegurar que seus direitos e de toda a população que ele representa, sejam cumpridos. Só prezo pela união, respeito, amor e igualdade. Em um país democrático, é o mínimo que deveríamos ter. Se ainda não temos, como de fato se vê, é sinal de que algo está errado.
P: Você declarou que, desde pequena, tinha noção de que era diferente e queria deixar sua marca no mundo. Que marca é essa?
PV: Uma marca de mudança e germinação para o futuro. Não a alcancei plenamente ainda, mas estou lutando diariamente para isso. Quero promover reflexões, debates, mudanças de hábitos, costumes, quebras de rótulos antigos e vazios. No fundo, só quero um mundo mais justo e humano.
P: Uma das bandeiras que você levanta com veemência é dar-se a possibilidade de viver abertamente, como quiser, sem rótulos, aceitando o próximo e se aceitando. Vamos imaginar que alguém lendo a POP-SE não sabe por onde começar a fazer isso. Quais os conselhos de Pabllo para quem quer se abrir ao mundo?
PV: Não tem uma receita de como fazer, mas eu acho que é um processo muito individual e único de autoconhecimento. Você precisa se libertar de pensamentos, posturas culturais e se permitir ser você mesmo, livre, sem qualquer amarra. A felicidade está dentro da gente, nós que demoramos a perceber isso.
P: O que é liberdade para você?
PV: Viver a vida em toda a sua plenitude e frescor, sem ter medo ou insegurança sobre o dia de amanhã. É ter a certeza de que posso ser eu mesmo, sem a angústia de represálias com violência física ou verbal. É ter meus direitos assegurados na prática e não apenas por escrito.
P: O que faz Pabllo sorrir? O que faz Pabllo chorar?
PV: O que me faz sorrir é a alegria verdadeira, o abraço de quem a gente mais ama, uma comida gostosa, um gesto humano e acolhedor. Já o que me faz chorar, é a falta de empatia, amor, respeito, humanidade e altruísmo. Isso me deixa sem palavras e me fere como nada mais consegue. Além disso, recordar memórias tristes do passado, que ainda doem muito.
P: Um amor, uma dor, um prazer e uma comida.
PV: Um amor: minha mãe, uma mulher batalhadora e com uma história linda. Uma dor: intolerância, preconceito, discurso de ódio. Um prazer: ver meus fãs cantando minha música a plenos pulmões. Uma comida: qualquer uma feita pela minha mãe, rsrsrsrsrsrs.
conceito, direção e criação_@Decornautas
arte digital/montagem/retouch_Marcelo Calenda
arte digital capa_Fujocka Creative Images (montagem/retouch) +
Marcelo Calenda (chapéu)
Stylists_João França Ribeiro (ela) + marcio banfi (ele)
Assistência/produção de Moda_Marina Costa + Júnior Martins (João frança Ribeiro)
Assistência/produção de Moda_david albuquerque + tatiana alves (Marcio Banfi)
CAMAREIRA_Tia Lúcia (Marcio Banfi)
Beleza_Pedro Moreira (make up) + Dan Araujo (hair)
Produção_Mayra Ometto + Adriana Oliveira + Diogo Dornellas
Fotografias_Salvador Cordaro
Nunca vou me conformar com a naturalidade que as pessoas diferem um ser do outro. É um ato tão comum para tanta gente que indigna