POP-SE faz um giro pelo Salar de Uyuni, deserto milenar em território boliviano que espelha o mundo com suas planícies alagadas durante o verão. A cada volta da terra ao redor do sol, o cenário fica mais acachapante
Texto_Luiz Felipe Silva
Fotografias_Fellipe Abreu
Não há horizonte. A linha natural que divide o céu e a terra desapareceu, e é difícil separar o que é real do que é reflexo. No Salar de Uyuni, o maior do mundo, todo chão é espelho. Seus mais de 10 mil quilômetros quadrados ganham este aspecto entre dezembro e março, quando chuvas intensas marcam o verão na Bolívia. Em contato com o sal, a água acumulada cria um efeito fascinante. O espetáculo é sazonal, e mais intenso em janeiro. Nos demais meses do ano, o que se vê é uma imensidão de branco: o solo feito de sal bruto. Não é incomum que turistas coloquem alguns cristais na boca para confirmar o fato.
A história do Uyuni começa há 40 mil anos, época em que o lago pré-histórico Michin começou a secar (dele também restaram os lagos Poopó e Uru Uru e as lagoas coloridas que integram, ali perto, o Salar de Coipasa). Estima-se que o deserto de sal em si abrigue mais de 10 bilhões de toneladas da substância, além de reservas de potássio, boro, magnésio e lítio. Tamanha abundância atrai o trabalho humano e logo nos primeiros quilômetros é possível encontrar pessoas fazendo força para extrair o composto do chão.
O roteiro clássico é feito ao longo de três dias e duas noites a bordo de um jipe 4×4, embora existam múltiplas versões. A viagem em questão funciona tanto para quem vai de Uyuni à chilena San Pedro de Atacama quanto no caminho contrário. Devido à proximidade geográfica e as várias atrações da região vizinha, este é um trajeto comum.
Rumo à atração principal, as paradas incluem um cemitério de trens, povoado por vagões desativados e grafitados que fizeram história no local (transportavam ouro, prata e outros metais para exportação) e uma visita à comunidade de Colchani, que vende suvenires e efêmeras peças feitas com o composto mineral.
Eventualmente, surgem os primeiros raios solares refletidos e cruzamos o limiar entre um tipo de solo e outro. Logo adiante, há um monumento ao rali Dakar, cujo trajeto margeia o Salar de Uyuni.
A parada mais famosa é a Isla del Pescado, que vista de cima se assemelha a um peixe. Com seus cactos gigantes (de até 9 metros de altura) e enormes árvores típicas do semiárido, ela só pode ser explorada a pé quando o terreno não está alagado. No período em que a ilha está interditada, os jipes param na planície – que, vale destacar, está 3.600 metros acima do nível do mar – para que todos possam apreciar o cenário duplicado, simultaneamente terrestre e celeste.
Quem optou por dormir no deserto, agradece: quando cai, o sol ganha nuances laranjas e as nuvens, formas imponderáveis. Após o recolhimento do astro, a cor púrpura parece cobrir o infinito. As noites se passam em hotéis de sal situados aos pés do vulcão Tunupa, um dos pontos mais altos da Bolívia. Conforto não existe: em qualquer temporada, faz frio à noite (nos meses de inverno, é quase insuportável).
O dia seguinte se dedica às lagoas e à reserva nacional de fauna andina. A Laguna Hedionda deslumbra com suas águas azuis e contornos brancos, mas exige esforço para suportar o forte cheiro de enxofre. Em seguida, surgem as Lagunas Honda, de coloração verde clara, e Cañapa, onde se concentram os flamingos. No meio das duas, há uma incomum formação rochosa conhecida como Árbol de Pedra, com base cilíndrica e uma espécie de copa pétrea. Por fim, a célebre Laguna Colorada, com seu vermelho dominante e pontos de azul.
A despedida do Salar de Uyuni começa cedo, às quatro da manhã. O sacrifício é para ver o sol nascer enquanto os gêiseres jorram água fervente de dentro da Terra. O frio pode chegar a -5oC, mas há um momento de prazer (e coragem): a chance de assistir ao espetáculo de dentro de uma piscina térmica natural.
Os últimos momentos passam pelo ambiente de ar surrealista do Deserto de Dalí, em homenagem ao artista, e pela Laguna Verde. Ao fundo, o vulcão Licancabur sinaliza a fronteira com o Chile – e lembra de outras maravilhas à espera.
“Quando cai a noite, a cor púrpura parece cobrir o infinito: o conforto é pouco, mas seres humanos existem e persistem na terra do sal”