O DESERTO QUE ATRAVESSEI

Entre hotéis baratos, postos de gasolina decadentes e intermináveis caminhos ermos nas entranhas dos Estados Unidos, Victor Affaro colocou no porta-malas apenas um mapa e sua velha companheira de aventuras, uma Leica M12, para este despretensioso encontro consigo mesmo – e com a gente

Texto_Giovanna Gheller
Fotografias_Victor Affaro

Nesta história de 2015 que poderia muito bem ter sido dirigida pelo aclamado Wim Wenders, o fotógrafo brasileiro Victor Affaro, nosso colaborador de outros carnavais, segue as pegadas de Travis, protagonista do clássico “Paris, Texas” (1984), por um cenário ermo tipicamente estadunidense repleto de chevettes, hotéis baratos e antigos postos de gasolina – e, sobretudo, muita solidão – em busca da redescoberta de si. As tomadas abertas do longa, entrecortadas ora pelo silêncio, ora por um vultoso horizonte sem fim, inspiraram a ideia, que resultou num quase-remake a partir de um ponto de vista pessoal.

Nem errado, nem errante – como o sujeito interpretado por Harry Dean Stanton (1926-2017) no filme –, mas, definitivamente, sempre na estrada e um tanto distante, Affaro pegou carona num projeto feito em São Francisco para viajar pelas sinuosas vias que levam aos desertos de Utah, Nevada, Califórnia e Arizona. A proposta? Se afastar de todo e qualquer sinal de telefonia por quase um mês para observar e registrar o que viesse.

Influenciado não apenas pela cinematografia, mas também pela narrativa pé-na-estrada de Wenders, ele escolheu a leveza. Seus companheiros para a andança foram poucos: um mapa, um carro alugado na cidade de Palo Alto e sua Leica M12 – além, claro, do imprevisto (previsto). “Não estava preparado para nada, e minha proposta era essa: sair fotografando e rodando sem destino, sabendo só que tinha um voo de volta para São Paulo”, diz. Para tanto, procurou se isentar de reservas prévias. “Eu dormia no carro em algumas regiões totalmente desérticas ou parava em motéis de beira de estrada e parques nacionais”, explica.

Eventualmente até se hospedou num hotel “bacanudo” (ele lembra que não fez “voto de pobreza”), mas as melhores estadias foram outras, impossíveis de planejar. Ao longo dos 5 mil quilômetros percorridos sob o sol ardente, frequentou bares fincados no meio de lugar nenhum e conheceu personagens que trocaram o sistema americano de trabalho e consumo desenfreado por uma mentalidade mais livre. Muito empolgados com sua aventura, alguns o convidaram para pernoitar nas próprias moradas, “casas de lata doadas pelo governo e onde uma vez por semana passa o caminhão-pipa levando água”.

Regido pela iluminação natural, Victor fez do vasto panorama sua tela e exercitou a paciência. “A fotografia de paisagem é como uma pintura: você idealiza uma imagem, espera a luz certa e aí prevê um pouco da cena que gostaria de captar, apesar do céu nunca se repetir”, comenta. Ele aponta as diferenças entre este tipo de clique contemplativo e outro que vai na direção oposta. “No retrato, existe uma pessoa à sua frente com sentimentos, desejos, vontade de aparecer de determinadas formas. Tenho que tirar algo dela – uma nuance bastante delicada. Na paisagem, fico esperando essa entrega. Ela é livre da minha ação, que não provoca nada.” Tudo isso, de certo, fez de Affaro especialista em correr atrás do relógio para conseguir o que precisa – e também mestre em travar amizades-relâmpago.

Durante sua road trip, essas e outras habilidades foram empregadas de maneira intensiva, sem as preocupações cotidianas, e o controle foi dado à natureza. “Durante vinte dias, fui fotógrafo full time. Não tive que responder e-mail, atender telefone, fazer o business”, fala. “Em São Paulo, vivo disso. É preciso ver se o estúdio está preparado, fazer uma pré-produção, saber quem, quando, onde”, pondera. Numa sociedade em que as contas (literalmente) chegam e o ritmo ditado é de um tempo que não pode parar, trata-se de um período precioso.

Victor classifica a experiência como um de seus ápices profissionais, e já pensa na Patagônia argentina e chilena como ponto favorito para uma próxima loucura – por enquanto em stand by. “São raros os momentos na vida contemporânea em que podemos nos dar ao luxo de seguir sem rumo. É um nível de ‘foda-se’ difícil de atingir nos dias de hoje.”
@victoraffaro | victoraffaro.com

“No retrato, existe uma pessoa à sua frente com sentimentos, desejos, vontade de aparecer de determinadas formas. Tenho que tirar algo dela – uma nuance bastante delicada. Na paisagem, fico esperando essa entrega. Ela é livre da minha ação, que não provoca nada”