Amores líquidos

Jaqueline Gomes de Jesus analisa a vulnerabilidade das questões de gênero na comunidade trans-tupinambá

Texto_Jaqueline Gomes de Jesus
Fotografias_Felipe Abe

Na dificuldade de se reconhecer no outro, a violência se alimenta da superficialidade frágil das relações humanas. Quiçá, um dia, possamos entender o amor e outras apostas

Era noite de domingo, na praça, e aquela menina se dirigiu ao vendedor, pedindo um isqueiro emprestado. Ele recusou, de maneira brusca. Ela reagiu ao destrato e disso passou a ser agredida pelo homem. Estranhos que não tinham nada a ver com a história se juntaram à tentativa de linchamento, chegando a quebrar uma cadeira de plástico na cabeça dela. A polícia enfim surgiu, separando as partes. A vítima foi levada de ambulância ao hospital, onde uma enfermeira zombou dela. Mais tarde, na delegacia, foi posta ao lado dos agressores, que riam e a insultavam. Dada a demora no atendimento, ela resolveu ir embora após duas horas de espera para registrar um boletim de ocorrência. Ao divulgar o ocorrido na internet, surgiram comentários como “apanhou pouco, seu demônio”.

Você reagiu com espanto a esse relato? Pensou algo como: “Meu Deus, por que fizeram isso com a garota?”, ou “Que mundo é este no qual vivemos!”. E por fim: o que isto tem a ver com amor?

Aquela menina se chama Lua Guerreiro, é minha amiga, tem 24 anos. É uma mulher trans negra. Trabalha como roteirista e estava no local com amigas que a defenderam durante todo o seu martírio. Providências legais estão sendo tomadas. O caso, que aconteceu no fim de fevereiro na Cantareira, em Niterói, ganhou alguma repercussão nos meios de comunicação. Apesar de toda a agressão, houve reação.

Os aspectos aparentes e estigmatizados da existência de Lua se tornaram “justificativa” para que um grupo de homens se revezasse para agredi-la e representantes do Estado desrespeitassem sua identidade. A transfobia e o racismo fundamentaram essa tentativa de aniquilação física e simbólica consecutiva, iniciada na rua, transferida para o hospital, a delegacia e o mundo virtual.

Esse ódio é a expressão mais palpável do avesso da afinidade com o outro. É o contrário do que alguns chamam de “amor” (digo “chamam” porque, como costumo explicar aos meus alunos, ao que muitas pessoas dão o nome, quando analisado, por vezes parece algo mais próximo da obsessão ou do próprio ódio), sentimento tão difícil de definir racionalmente e que o escritor francês Marcel Proust classificou como “tempo e espaço medidos pelo coração”. As pessoas com o mínimo de sensibilidade compreendem.

Nos tempos em que vivemos o encontro com o outro sem firmar laços, esse “amor líquido” discutido por Zygmunt Bauman nesta Sociedade do Conhecimento – abundante de informações que ainda não aprendemos a selecionar da maneira mais útil às nossas vidas –, as relações interpessoais são muito mais fortuitas e superficiais do que outrora. Temos milhares de amigos e seguidores nas redes sociais, porém padecemos de ansiedade e depressão em nosso cotidiano solitário na frente das telas de celulares e outros aparatos, sozinhos em nossos apartamentos, no meio da multidão.

Não nos reconhecemos no outro que não seja nosso espelho. Amamos espelhos de nós mesmos. Não ouvimos o outro, só nos ouvimos: aos nossos estereótipos, ao apelo de nosso mais deletério desejo de morte transferido àqueles desvalorizados, indesejáveis. Abrimos mão da empatia, do mínimo de contato afetuoso com as pessoas que não convivem conosco. Isso se torna parte de quem odeia, um elemento basilar de sua “essência”: aquele que agride o faz porque só se entende como humano ao destruir a mulher, a trans, a negra. Negar a realidade a quem, dentre os tantos humilhados e ofendidos desta sociedade desigual e iníqua, teve o dissabor de se encontrar com ele, no mundo físico ou na internet.

Não que a virtualidade seja perniciosa em si. Ela tem sido um meio poderoso para a auto-organização da população trans, a proliferação do pensamento feminista e a denúncia de todo tipo de violação de cunho racista, por exemplo. A facilidade com que ela nos permite o encontro, curiosamente, também estimula o desencontro. Se aqueles homens tivessem em algum momento de suas vidas convivido com uma pessoa trans, em pé de igualdade, na sua comunidade, nas escolas ou no ambiente de trabalho, sem que ela fosse tratada como objeto sexual descartável ou alvo do ridículo, não haveria tanta desumanização e crença de que “esse tipo de gente” mereceria morrer, que seria válido atacar e desrespeitar sua identidade.

Vale comentar que eu postei sobre o caso no meu Instagram e, no dia seguinte, o vendedor que iniciou a violência se preocupou em comentar a minha postagem afirmando que não tinha nada contra a Lua, mas que “o rapaz” (SIC) foi quem começou tudo ao desrespeitá-lo… Em momento algum do seu texto ele reconheceu que não havia motivo para seus atos. Talvez esse ódio, em algum momento apaziguado e destituído das suas justificativas no nível mais profundo, oxalá repudiado pela sociedade, tornar-se-ia uma porta para que o agressor pudesse ser alguém autêntico, para além dos rígidos papéis machistas, racistas e transfóbicos que lhe foram apresentados como seus, e nos quais ela se enxerga.

Precisamos de um amor ao próximo mais concreto, que não se restrinja a hashtags. Essa não é uma demanda apenas de quem odeia, mas também de quem tem nojo (aceita a existência “dessas pessoas”, desde que longe delas) ou apatia. Essa afinidade gerará uma outra humanidade, que não enxerga no outro o exótico, mas antes disso se reconhece a si própria como diversa e, no outro, a diferença que lhe torna uma pessoa melhor – porque convive, porque não se vê como superior ou mais digno.

Isso também é amor, de alguma forma. E também é uma aposta. Um permitir-se sair do conforto de sua suposta e suspeita estabilidade. Assim construiremos outras masculinidades e feminilidades, ou algo aquém a esse apartheid de gênero binário. Quando, por exemplo, somos capazes de ouvir e falar com uma mulher trans, uma travesti, um homem trans ou uma pessoa não binária sem infantilizá-las ou animalizá-las, esperando que vivam em algo que satisfaça um perverso voyeurismo de quem anseia por zoológicos humanos.

Não só porque isso garante a plenitude de mulheres trans e negras como a minha jovem amiga Lua, mas principalmente quando pensamos coletivamente, porque reconhecemos que não só o outro foi estereotipado, mas eu também. E posso ter introjetado esse estereótipo que me foi dado – de homem ou de mulher, de branco ou de negro, de cis ou de trans – de tal modo que eu nem saiba quem sou. Conheço apenas como “eu” aquilo que desde o parto me ensinaram que eu seria.

Conhecer-se a si mesmo é a mais difícil das tarefas hodiernas. Ela passa necessariamente pela empatia, pelo ato de se colocar no lugar do outro, no entendimento de que somos humanos porque somos diferentes e não porque temos de ser iguais. Experiência geralmente dolorosa para alguns, mas que, entretanto, pode nos levar além, a uma forma de ser que ainda ignoramos, a um projeto milenar que ainda não é reconhecido em muitos: quiçá nos tornemos plenamente humanos.

As feridas corporais de Lua estão sarando. Ela está se cuidando e sendo cuidada para que os danos psicológicos também melhorem. Viver é militar, e seu caso evidencia que nossa existência é resistência. Se você puder se reconhecer nela, um dia também poderá ver o que és, se re-conhecer, seja lá quem você for.

@instadajaqueline

Jaqueline de Jesus é professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), leciona no Campus Belford Roxo, na Baixada Fluminense. É doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Foi a primeira assessora de diversidade e apoio aos cotistas e coordenadora do Centro de Convivência Negra da UnB. Autora de dezenas de publicações sobre identidade e movimentos sociais, como os livros “Transfeminismo: Teorias e Práticas” e “Ainda que Tardia: Escravidão e Liberdade no Brasil Contemporâneo”. Em 2017 recebeu a Medalha Chiquinha Gonzaga, das mãos da vereadora Marielle Franco, honraria concedida pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro a mulheres com reconhecidas contribuições sociais e culturais.