Uma elucubração pessoal e intransferível de como a luta para combater a apropriação intelectual indébita e as cópias no Brasil se tornou um triste calvário na literatura, nas artes plásticas, na música, no cinema, na moda, na gastronomia, na arquitetura e, principalmente, na nossa ainda quase naïf quitandinha do design
Por_Allex Colontonio | Fotografias_Rui Mendes
Beleza_Renan Tavares | moda_Caio Sobral
Senta que lá vem epílogo – e dos grandes. Ao atracar suas naus na Bahia de Todos os Santos, escoltada por esquadras britânicas, no dia 18 de dezembro de 1808, a Família Real Portuguesa e os mais de 15 mil indivíduos que engrossavam a expedição – multiplique aqueles cruzeirões open-bar da CVC por dez para ter uma ideia do contingente – já encontraram por aqui um rincão domesticado, catequizado e praticamente reconstruído à imagem e semelhança do primo europeu, com uma população mais submissa do que as aias do “The Handmaid’s Tale” (série norte-americana produzida pelo serviço de streaming Hulu, febre da vez, baseada no romance de Margaret Atwood que aborda a opressão feminina levada às últimas consequências num país totalitário e teocrático onde a única resposta possível é “sim, senhor” – qualquer semelhança com o que já vivemos, por exemplo, no genocídio indígena abençoado pelos jesuítas durante o Descobrimento, não é mera coincidência). Como pudemos ler nas vetustas cartilhas da Editora Melhoramentos, a nova sede do Reino de Portugal se apossou da capital do Estado do Brasil, mais conhecida como Rio de Janeiro, numa espécie de “inversão metropolitana”, ou seja, a colônia passou a exercer a soberania do império ultramarino portuga, que escafedeu-se das tropas de Napoleão tão logo os franceses ameaçaram destroná-los. Trocando de pato pra ganso (ou melhor, de foie gras confit pra bacalhau a lagareiro), pela primeira e única vez na história da humanidade um exílio político-tropicaliente passava a ser uma corte europeia com pompa e circunstância. Ainda assim, com certa ojeriza aos resquícios de selvageria dos nossos antepassados “canibais”, os sangues azuis demoraram alguns dias para botar as fuças em terra firme, para depois embarcar rumo ao Rio, ainda mais enojados com o que viram. Rebobinando a fita com mais força para não restarem dúvidas sobre a nhaca que orbitava as embarcações, vale abrir um livrão (“500 anos da Casa no Brasil”, Francisco Salvador Veríssimo, 1999, editora Ediouro): “Os viajantes estrangeiros consideravam o Rio de Janeiro, como disse dela um inglês, ‘a mais imunda associação humana vivendo sob a curva dos céus’. Em contraste com a belíssima baía azul e montanhosa, as casas eram feias. As ruas, sujas, atraíam ratos, porcos e animais domésticos que vinham comer os restos de lixo jogados porta afora. O ‘desasseio’ das praias, em cujas águas se derramavam os dejetos domésticos, preocupava as autoridades: despejos cujos eflúvios voltam para a cidade e a fazem pestífera”. Eca!
Naquele abril, a realeza foi alojada em três prédios no centro da cidade milimetricamente preparados para recebê-los com sua memorabilia imperial cravada por volutas douradas esculpidas em poltronas e recamiers de veludo adamascado, recheando ambientes pintados com trompe l’oeils e outros afrescos monárquicos, além de uma biblioteca portentosa onde se organizavam mais de 60 mil livros. Sem nenhuma redinha tapuia na varanda, os endereços fundamentais eram o Palácio de São Cristovão (o famigerado Museu Nacional – que Deus o tenha, já que o descaso o transformou em cinzas junto com o maior acervo de história natural e antropologia das Américas em setembro último), o paço do vice-rei Marcos de Noronha e Brito, conde dos Arcos, e o convento das Carmelitas. Os demais agregados espalharam-se pela cidade em casarões confiscados sem aviso prévio, assinalados com as iniciais “PR” (“Príncipe-Regente”), o que deu origem aos trocadilhos “Ponha-se na Rua” ou “Prédio Roubado”, deflagrando o bom humor brasuca desde o início dos tempos, até na desgrama mais desgramada. Naquele mesmo mês, um gorducho e desengonçado dom João VI (sujeito “finérrimo”, que andava com duas coxas de frango assado em cada um dos bolsos de seu manto real, para ir beliscando ao longo do dia num gesto que alguns registros classificam como “grotesco”) decretou a suspensão do Alvará de 1785, que proibia a criação de indústrias no Brasil. A medida permitiu a instalação, em 1811, de duas fábricas de ferro em São Paulo e nas Minas Gerais, num esboço de progresso que logo iria para as cucuias, pois os ingleses ofertavam importados mais bem elaborados a preços atraentes, viabilizados pelo Tratado de Comércio e Navegação (os anglicanos, queridinhos, ora pois, pagavam modestos 15% de impostos, enquanto os demais países tinham que desembolsar 24% – e claro que a fatia retida por esse sistema, digamos, antediluviano do nosso IR, deixava os nativos à beira de um ataque de nervos). Todo esse blá-blá-blá para concatenar que, numa analogia quase tosca, de tão simplista (porém honesta), arrisco dizer que reside aí a gênese de dois males que grudaram feito carrapato em nosso código genético: a estética gringa esmagando qualquer possibilidade de busca por uma identidade legitimamente nacional, ainda acometida pela síndrome absurda de valorizar mais aquilo que vem de fora do que o que se produz por aqui; e o espectro fabril brasileiro acanhado por desvantagens que até hoje inibem sua decolagem. Características que, pisando em suspiros e quindins, favorecem, estimulam e impulsionam a pior mazela contemporânea em qualquer processo criativo, artístico, artesanal ou industrial: a apropriação intelectual indébita e seu coté mais vulgar, também conhecido como cópia.
O código da vinte (e cinco de março)
Não existe estudo científico mais eficiente do que uma boa pesquisa de campo, ainda mais acompanhada de uma ode à gordura trans. Com cheiro de tempura de camarão-de-sete-barbas e um aglomerado de barraquinhas vermelhas de toda a sorte, de onde saltam aos olhos desde colherinhas de bambu a bonsais de jaca e jambu, o bairro turístico da Liberdade, região central de Sampa, é mundialmente afamado como a maior colônia nipônica fora do Japão (para não citar os imigrantes/descendentes da China e da Coreia do Sul que engrossam os simpáticos olhinhos puxados da vizinhança). Suas ruas, de onde se avista o poderoso domus neogótico da Catedral da Sé (“sincretismo” arquitetônico pouco é bobagem, né, gente?), são iluminadas por folclóricos postes blood-red de três cúpulas-bolas que evocam a terra do sol nascente e abarrotadas por uma muvuca que nada deixa a dever àquelas aglomerações-formigueiras de Tóquio. Exatamente pelo fluxo de transeuntes, a área também se transformou num dos grandes points da mercancia popular paulistana, à moda dos conterrâneos Brás, 25 de Março, José Paulino e largo 13 de Maio, além da nada desértica (porém escaldante) versão carioca dos nossos camelódromos, o Saara, no centro histórico da cidade maravilhosa.
Voltando à minha vocação investigativa in loco, direto na “cena do crime”, já faz algum tempo que, não importa o quão ocupado ou preguiçoso eu esteja, dedico pelo menos a manhã de um sábado por mês para dar um pulinho na Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados que, caso você não tenha levado esse nome apocalíptico a sério, trata-se de uma reconhecida abadia das causas impossíveis. Tudo para acender uma velinha de agradecimento e outra com pedidos nababescos – se a minha retórica já é hiperbólica, você não faz ideia do (des)nível de sanidade dos meus sonhos, e muito menos de quantas caçambas de parafina eu derreti para conseguir imprimir esta revista (Ele, o Todo-Poderoso, tem sido camarada comigo). Para não perder a viagem, claro que, na qualidade de explorador não lá muito fã de yakissoba (todo mundo ama, mas eu não como nem por decreto), aproveito para dar um rolê pelas tendas zen antes de me atracar despudoradamente, tal e qual o dom João do Galetinho, a um bom pastel de queijo na barraquinha da praça da Liberdade com a Vergueiro, pra mim, o mais sequinho de todos – tem alguns por aí que, se a gente espremesse, daria pra fritar outro pastel só com o óleo que verte do bocado. A cerca de três quilômetros dali, no Mercadão Municipal (outro prédio neoclássico com leve pastiche gótico que comemora 80 anos de idade como um dos points turísticos mais atulhados da urbe), pelo menos três boxes disputam a autoria do “verdadeiro pastel de bacalhau”, sintoma de que a coisa tá preta em toda e qualquer seara quando se fala em copyright.
No percurso, rola uma curiosa nostalgia: apesar da superpopularidade da tevê a cabo (aliás, chupa essa manga: você sabia que, segundo a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), as emissoras perdem cerca de R$ 6 bilhões por ano devido ao “gatonet”?), o ramo da pirataria lucra tudo e mais um pouco com os quase paleolíticos DVDs – o Brasa, pentacampeão que não faz bonito numa Copa do Mundo há tempos, adora golear rankings pouco lisonjeiros: além de sermos o segundo pior país do mundo em mobilidade social, o quinto que mais comete feminicídio, e líderes invictos na categoria “matar LGBTs”, estamos no top five das nações que mais consomem cópias clandestinas de audiovisual, preju avaliado em R$ 130 bilhões por ano. Quando não estamos falando de música, games, filmes e séries, o buraco é ainda mais embaixo.
Numa daquelas galerias que a gente paga para entrar e reza para sair, entre traquitanas eletrônicas (cartuchos de joguinhos, paus de selfie, capinhas de celular de simulacros do Mickey e dos Simpsons), óculos de sol ray-bons e ray-maus, pseudo-Nikes, Adidas e Pumas, Amarulas e Red Labels genéricos, perfumes renomados com cheiro de xixi de gato e estandes de tráfico de órgãos (ok, essa foi de mentirinha, mas a origem da muamba supracitada também é), as bolsas levianamente etiquetadas como Gucci, Hermès, Prada, Armani, Marc Jacobs e cia. (mais falsas do que o barrigão pontiagudo da Grávida de Taubaté) disputam a atenção do mulherio-ostentação ávido por tombar com as inimigas. As que mais dilatam as pupilas são as famigeradas xerocópias da Vuitton, que podem ser compradas a partir de tentadores 200 reais. “São oliginais, né? Tudo oliginal da China”, me conta uma orgulhosa coreana com sotaque “calegado”.
Fundada na Paris de 1854 (dois anos antes do Tratado assinado por Napoleão III que garantiu o êxito do Império Otomano) pelo seleiro homônimo que criaria um novo lifestyle em viagens com baús e malas que logo caíram nas graças da burguesia durante a Belle Époque francesa, a Louis Vuitton, ícone supremo do luxo, atravessaria as décadas – e as fronteiras – com seu famoso canvas monogramado em letras alinhadinhas, impecavelmente simétricas, preparadas, ironicamente, para inibir as fraudes. Até hoje levam semanas para serem elaboradas e boa parte delas é manufaturada por um mesmo artesão do início ao fim do processo, com rigores inimagináveis de qualidade em cada etapa de corte, costura, acabamento e técnicas de joalheria nas ferragens. Consequentemente, um modelo bem basiquinho não sai da loja por menos de quatro dígitos – no site brasileiro da marca, dá pra encomendar uma a R$ 133 mil (!). Pouco antes do fechamento desta edição, caminhando e cantando e seguindo a canção pela rua Garcia D’Avilla, em Ipanema, muito distraidamente, flagrei uma autêntica bem bonitinha girando na vitrine da marca (num engenhoso carrossel tipo aqueles dos frangos de “tevê de cachorro” que fariam o mascote do dom João salivar). Customizado com stickers, tinha uma etiquetinha microscópica, escrita em fonte menor do que bula de psicotrópico: R$ 8,5 mil.
Se, por um lado, a originalidade tem seu preço, por outro, para quem acha que cópia é mercado lucrativo apenas nas vivendas subdesenvolvidas cá do lado de baixo da Linha do Equador, vale registrar que, na órbita de qualquer ponto turístico em metrópoles do primeiro mundo, como Milão, Roma, Paris, Lisboa ou Madri, esmerados camelôs exaurem o gogó em diversos idiomas – inclusive no bom português – anunciando seu vasto acervo de réplicas a partir de 20 euros. Turistas incautos (ou metidos a espertos) se refestelam.
Em outra escala, o design de produto ainda não se popularizou ao ponto de ser alienado às baciadas nas “zonas francas”, mas, em lojas da rua Teodoro Sampaio (parente em primeiro grau – embora menos aristocrática – da Gabriel Monteiro da Silva, epicentro nervoso do high design), é possível encontrar ilicitudes como a cadeira Masters, do bambambã Philippe Starck, por R$ 250. “Mas os produtos são copiados e vendidos na própria Gabriel Monteiro da Silva. Proliferam, indicados por profissionais que os avalizam para seus clientes. Acho isso o mais chocante. Às vezes, o fazem por falta de cultura e educação. Outras, para ganhar viagens com os lojistas e fabricantes, que convidam com ‘tudo pago’ especialmente para a feira de Milão, para copiar os lançamentos. Esses arquitetos/decoradores vão em bando, pois acham importante estarem na Itália nesse período para serem vistos em festas e eventos públicos. Gente malvestida com as melhores grifes, que posta nas suas redes sociais o retrato da desinformação. Então, enquanto eles não forem a museus, galerias, universidades e se educarem, não teremos como combater. Acredito na nova geração que está mais interessada e conscientizada. Claro que existem as exceções, senão estaríamos mortos”, vocifera Sandra Bork, que, ao lado do marido Hélio, comanda a Montenapoleone (loja instalada num prédio deslumbrante assinado por Aurélio Martinez Flores, que representa cerca de 20 marcas peso-pesado como Poltrona Frau, Cassina, MDF Italia e Molteni). Sandra também está por trás da Kartell (a verdadeira) da Gabriel, brand-ícone do mobiliário de polímero cujas réplicas fraudulentas (aquelas tipo as do Starck) correm a preço de banana para alimentar micos do tamanho do King Kong. Mesmo se você, ao contrário de mim (e, quiçá, do dom João), não for pastelonomaníaco ou chocólatra e jamais tiver passado pelo desdouro de quebrar uma daquelas cadeiras vagabas de churrasco por conta do excesso de arrobas na balança, vale anotar a dica: mantenha distância! As pernas abrem mais fácil do que… (melhor não comentar para manter o nível da narrativa, né?).
Pequeno dicionário de sinônimos
Originalidade nem sempre rima com popularidade. Mas alguns labels se tornaram cases tão fenomenais na indústria ao ponto de literalmente carimbar seu nome fantasia como sinônimo dos produtos que anunciam tanto nos rótulos, quanto na ficha técnica. Você sabe o que é ácido acetilsalicílico, por exemplo? Prazer, Aspirina. Hastes flexíveis para higienização auricular? Cotonete, ao seu dispor. E o queijo semifluido por coagulação láctea utilizando bactérias, enzimas ou coalho, com adição de frutas? Iogurte é o ca!+,lho, meu nome é Danone, p!+,a! E aquela fibra sintética, tipo tecido, com grande elasticidade? I’m Lycra. E segue o baile com o Bombril, o Band-Aid, a Cândida, o Catupiry, o Durex, a Gilette, o Isopor, o Leite Moça, o Jeep, a Maisena, o Miojo, a Super Bonder, o Tupperware, o Sucrilhos, o Vick VapoRub e o Veja (o alvejante, não a revista, que fique claro). Apesar da concorrência e das inúmeras tentativas de quebrar o monopólio ao longo das décadas, todo esse moral inibe o crescimento de similares surgidos depois, fortalecendo as patentes que se mantêm praticamente inabaláveis em seus respectivos setores.
Mas até os “intocáveis” podem derrapar na curva. No ano passado, uma das grifes mais insuspeitas do universo fashion, a Balenciaga (aquela que leva o sobrenome do espanhol considerado “o grande arquiteto da haute couture”), teria “se inspirado” no modelo de uma ecobag de ninguém menos que a superpop Ikea (marca de design low budget – e supercool – que eu torço para que abra uma filial no Brasil). Salvo as divergências de matéria-prima, as bolsas são praticamente idênticas, inclusive no mesmo tom metalizado de azul. Nas lojas da marca sueca, que se multiplicou pela europa feito gremlins dançando no toró, a bag sai por US$ 1,49. Na Balenciaga? Inacreditáveis US$ 2.145, segundo o site da Glamour (globo.com). Para citar um caso ainda mais recente, em setembro último, a designer inglesa Edda Gimnes acusou a Moschino de ter plagiado seus filhotes, e foi além: garantiu ter feito uma reunião com um funcionário da marca em novembro do ano passado, em que mostrou seus esboços e ideias surrupiadas. A Moschino nega e o bafafá nos tribunais está apenas começando. O caso Edda é parecido com um quase-escândalo envolvendo a todo-poderosa Chanel. Em dezembro de 2015, a grife de Mademoiselle Coco foi, habitualmente, muito elogiada por um desfile chamado “Métiers D’art”. Mati Ventrillon botou a boca no trombone: representantes da Chanel haviam aparecido em seu ateliê meses antes insistindo em comprar seus suéteres direto na fonte. “Só vendi pela reputação da Chanel e não esperava que copiassem minhas peças… Mal sabia eu”, mandou no textão do Facebook. A Chanel, que desfilara dois suéteres iguaizinhos, abafou o caso colocando o nome da estilista nas roupas.
Na República das Bananas, é claro, as histórias são sempre mais pitorescas, desde os tempos dos dedos engordurados do dom João. Em 2011, a Diageo, dona do uísque Johnnie Walker, entrou com processo administrativo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) contra a cachaça mineira “João Andante”. Além da tradução literal (e sem sentido), o rótulo do etílico brasileirinho trazia um símbolo similar ao do britânico. Após a Diageo ganhar o processo em primeira instância, of course, os donos rebatizaram o goró para “O Andante”, e o homenzinho teve suas pernas cortadas para não remeter ao Striding Man – o “andarilho da Walker”, embora mentira tenha perna curta (ou guilhotinada), o rebu despejou um marketing espontâneo de cachorro grande: o número de vendas se multiplicou por cinco. Ironicamente, as duas patentes entraram, em 2014, em um embate com outra sociedade mineira que lançou a cachaça “Maria Andante”.
Se, por um lado, a originalidade tem seu preço, por outro, para quem acha que cópia é mercado lucrativo apenas nas vivendas subdesenvolvidas, vale lembrar que em Roma, Paris, Lisboa, Madri ou Nova York, esmerados camelôs exaurem o gogó em vários idiomas para ganhar turistas incautos (ou espertinhos) com spots fashion fakes
Originais do Bamba
Numa época em que todas as formas, volumes e texturas já foram inventados e reinventados à exaustão, a matéria-prima mais infalível – e rara – de todas continua sendo o bom e velho desenho autoral. Apesar de as cópias representarem um perigo real e imediato, alguns criativos ainda estimulam (e impulsionam) o crescimento saudável do setor, e começam a ganhar oportunidade na indústria. Não é nada fácil. A edição 2018 da semana de design mais disputada do mundo – o Salão do Móvel de Milão, que movimenta, a cada abril, as cifras mais expressivas do âmbito – já deixou mais do que claro: estamos vivendo um dos piores colapsos da história recente da movelaria. Um crash muito mais criativo do que econômico e um sintoma de que o desenho autoral, em tempos de tantas cópias (e, muito pior, de tantas vistas grossas às cópias), passa a ser o grande x-factor para driblar o déjà vu e voltar a impulsionar a roda. Mas como apostar no novo? Com protótipos que chegam a custar 500 mil euros (entre estudos de novas tecnologias e matérias-primas), a máquina mundial prefere apostar em formas já consagradas, com tiro certeiro no consumo, o que movimenta “tendências” em pseudoevoluções mais baratas. Velhas linhas são revisitadas em novas cores e acabamentos, por exemplo, gerando um ciclo vicioso que se traduz em muitos produtos com cara de “mais do mesmo” e poucas novidades tangíveis em si. E, nessa métrica, “replicar” se transformou num dos verbos mais conjugados do setor. Numa explicação objetiva, as cifras têm sido bastante movimentadas pela reprodução quase irresponsável de clássicos como a legendária mesa Saarinen Tulip (do designer escandinavo Eero Saarinen, de 1957, e moderna para sempre), ou as cadeiras Bertoia (de Harry Bertoia, produzidas pela primeira vez em 1952). Tecnicamente, toda peça de mobília assinada por gente que morreu há mais de 50 ou 70 anos (dependendo do país) cai em domínio público, o que não torna sua reprodução necessariamente um crime. Mas algumas firmas usam matéria-prima tão ordinária e descaracterizam tanto as medidas originais que chegam a escandalizar o manual básico do bom desenho com proporções fora de escala, ergonomia zero e formas com pouca (ou nenhuma) função, engrossando o coro de que o barato pode custar caro. Até gabaritos eternizados pela história estão ao alcance de um clique nesses tempos de globalização. Em uma navegada rápida pelo Google, por exemplo, é possível encontrar tutoriais de marcenaria que ensinam a fazer a sua própria cadeira Red and Blue que escolhi para abrir este ensaio fotográfico (clássico de 1917 atribuído a Gerrit Rietveld) em casa. Na tentativa de democratizar as criações mais do que pretender driblar essa labiríntica dialética da assinatura, os exercícios de design open source, ou apenas open design, irrompem como uma forma de cocriação a partir de informações livremente compartilhadas que permitem aos usuários, mais do que empresas privadas, criar diversos modelos de coisas no campo digital. A disponibilização de informações faz com que objetos sejam mais acessíveis e facilmente replicados, o que pega carona também no movimento pegue-e-faça-você-mesmo, o Do It Yourself.
Em pesquisa encomendada pela agência Reuters (e publicada pela revista “Exame”), a associação de design de luxo Altagamma afirmou que quase 2 bilhões de euros em cópias são vendidos no mundo ao ano. A Federação de Comércio do Rio de Janeiro confirmou recentemente a triste suspeita: cerca de 40% dos consumidores brasileiros compram produtos piratas.
De 20 anos para cá, a coisa até que andou um pouquinho, é verdade, ainda que cambaleando mais do que a tal da “Maria Andante” depois do porre. Entretanto, é quase ingênuo dizer que a indústria brasileira chegou lá, até pelo contexto de arremedo das movelarias maiores, principalmente na região Sul, onde o Brasil é um pouquinho mais europeu e se destaca como um dos maiores polos moveleiros da América Latina. Na verdade, salvo raras exceções, sob determinado prisma, chega a ser naïf chamar nossa pequena quitandinha autoral de indústria: tudo é novidade no setor e seria hipocrisia dizer que nenhuma delas copia (ou que, pelo menos, não copiou em determinado momento).
Contudo, players poderosos (pelo menos os bem-intencionados) já viraram a chave e começam a reverberar inclusive internacionalmente com uma produção que rivaliza de igual para igual com brands gringos, em atitudes louváveis como o abre-alas aos novos talentos.
O empresário Houssein Jarouche, 44, um dos pioneiros na defesa do design assinado em fronteiras brasileiras, está entre os major players do segmento que são, frequentemente, alvos fáceis/fartos para a metralhadora da indústria das cópias – sua Micasa, loja-fundamento criada em 1998 e estandarte do design-arte na pauliceia, traz no acervo alguns dos clássicos originais mais reproduzidos em todo o mundo, a exemplo de Eames, Saarinen, Panton, Urquiola e Hayon. Houssein explica: “A cópia é um ciclo destrutivo que atinge toda a cadeia produtiva, rouba o direito de autoria do designer, e desestimula, assim, a criação. A cópia estagna a produção industrial, corrompe a cadeia comercial daqueles que lutam para trabalhar com produtos sérios e, por fim, fere o consumidor”.
(In)siders versus (Out)siders
Considerando a qualidade pessoal e intransferível da retórica anunciada logo na abertura do textão, me permito, sem culpas, compartilhar vivências sem ser acusado de demagogia, corporativismo ou adulação (até porque ninguém NUNCA pediu para eu escrever nada disso – tampouco patrocinou o conteúdo deste manifesto). Há pouco mais de três anos, venho acompanhando de perto a produção da Artefacto e realizando, ao lado do André Rodrigues, um trabalho de fôlego na comunicação da marca (somos nós que assinamos seus catálogos, site e mídias sociais). Com 42 anos de tradição e a liderança de mobília outdoor na Flórida, a grife não se debruçou em sua zona de conforto e tem apostado na evolução da tradição com forte pesquisa e cada vez mais qualidade autoral. Além dos Decornautas (responsáveis por contar essa história), integram os bastidores nomes como Patricia Anastassiadis (consultora-criadora das novas coleções do brand, o que define como “um trabalho que está apenas começando”), Clarissa Schneider e uma gema vistosa de designers. Um bom modelo de reposicionamento, que começa a ser praticado por outros colegas que até anteontem preferiam ter seus produtos confiscados da vitrine em mandados de busca e apreensão do que oferecer oportunidades às novas pranchetas criativas que estão batendo às suas portas cheias de gás. “A indústria está mais madura e cada vez mais valorizando os designers brasileiros. Interpretar a casa contemporânea e os novos hábitos de consumo, assim como fazer um uso mais racional dos recursos ambientais em cada etapa da construção de uma peça, é tão fundamental quanto a valorização do fatto a mano, principal característica do DNA Artefacto, que aposta na integridade do desenho e no respeito aos designers, com produtos totalmente patenteados”, diz Paulo Bacchi, CEO da marca. Clarissa, consultora de estilo da Artefacto Beach & Country para alguns projetos, lança: “As empresas de sucesso são aquelas que são mais criativas e inovadoras. Elas não copiam o que os outros fazem; em vez disso, buscam curadoria, conceito e inovação. São capazes de sustentar seu próprio negócio com criatividade e inteligência. Se alguém os copia, eles criam algo novo e melhor. Quando você aplica criatividade e inovação a todos os aspectos do seu negócio, você é capaz de ficar à frente de um mercado em constante transformação”, diz a idealizadora da nova linha Oasis. “Aqui temos uma coleção de móveis outdoor que é o resultado de muitos meses de curadoria, trabalho e pesquisa, envolvendo os arquitetos Arthur Casas, Felippe Crescenti, Miguel Pinto Guimarães e Ricardo Bello Dias, além dos técnicos da Artefacto, seus artesãos e toda a tecnologia”, conclui.
Como uma deusa
A primeira pessoa da história das civilizações a ter um trabalho assinado foi uma mulher: Enheduanna, nascida em Ur (atual Iraque), 5 mil anos antes de Cristo. No texto devidamente creditado, ela falava sobre o planeta Vênus e as estrelas. Elegeu-se sacerdotisa num movimento estratégico para assegurar o poder do reinado na região sul de Ur – e decidiu deixar explícita a origem do manifesto para propagar seu nome entre os súditos. O input inaugural de “autoria” foi, portanto, um gesto político (e feminista). Arquiteta e designer de origem grega – e um dos nomes mais prestigiados (e produtivos) do panorama brasileiro, com expressiva extensão além das fronteiras (ela riscou mais de 700 projetos planeta afora), Patricia Anastassiadis lembra como a mitologia explica a falta de ideias e evoca a etnologia da palavra “pseudo” (falso, enganador, fictício, ilusório). No Olimpo, Pseudeas eram a personificação da mentira. Companheiras de Apate (Engano), Ate (Ruína) e Dolo (Fraude), servas de Polideimos – deus supremo do delírio. São a prole de Éris, filha rejeitada de Hera (por ter nascido feia, tadinha).
É desse balaio de gato, aliás, que vem a expressão “mentira tem perna curta” que usei lá no caso da cachaça, diretamente relacionada a uma réplica mal-executada. Prometeu decidiu um dia esculpir uma deusa chamada Aleteia e, enquanto estava trabalhando, um chamado inesperado de Zeus interrompeu a sessão argila. Deixou o astuto Dolo no comando de sua oficina que, inflamado pela ambição, moldou uma figura de mesmo tamanho da Aleteia, com características idênticas. Ao finalizar a peça com impressionante precisão, deu com a falta de massa para moldar os pés, e saiu de fininho. O mestre Prometeu ficou impressionado com a similaridade das estátuas e decidiu colocar ambas em seu forninho. Ao término do cozimento, ordenou que elas dessem um giro no melhor estilo “do barro à vida”. Aleteia caminhou, enquanto sua irmã ficou imobilizada com cara de tacho.
“Cópia, para mim, é paralisia. A grande beleza está na criação, e quando não há verdade, desenvolvimento criativo, há limitação, falta de originalidade e, inevitavelmente, a tristeza e a pobreza que orbitam uma réplica. Essa problemática se espalhou por todas as áreas, da moda à construção civil, e, muitas vezes, foi estimulada pelas circunstâncias sociopolíticas do País”, pondera Anastassiadis sobre a polarização que a questão suscita. “Lamento profundamente a cópia, mas temos o péssimo hábito de tomar posições muito extremistas sem avaliar o contexto histórico. Colocar um produto no mercado é muito caro. A indústria nunca investiu em criação porque, culturalmente, por aqui as ideias jamais foram valorizadas. Quem vem conseguindo prosperar com sua empresa há mais de 50, 60 anos nesse segmento, por exemplo, pode ser considerado um herói, levando em conta que, além dos custos básicos de um protótipo, há ainda a falta de incentivo fiscal, as piores leis, tributos constrangedores e a economia fechada que sempre impediu a importação de bons insumos.” Sem falar no perfil familiar das marcas, que, segundo Patricia, corroborou com um ciclo vicioso. “A cultura da cópia no Brasil vem de muito tempo e demandaria um bom estudo antropológico. Para começar, nos grandes grupos, as famílias misturavam negócios com lazer – uma viagem de férias à Europa também representava uma passadinha pelas feiras para trazer catálogos e fazer deles, um gabarito”, conta. “Seria ingenuidade dizer que a cópia vai acabar, mas a boa notícia é que o mundo está mudando e o consumidor contemporâneo está cada vez mais preocupado com a procedência daquilo que compra, com os processos fabris, com o resíduo que aquilo gera, com o impacto sobre o planeta”, finaliza. Em termos competitivos, sob esse aspecto, graças aos deuses, cópias não passarão. Amém?
Com protótipos que podem custar milhões, a máquina mundial prefere apostar em formas já consagradas, com tiro certeiro no consumo, o que movimenta “tendências” em pseudo-evoluções mais baratas
Admirável carbono novo
E por falar em Milão e em experiência de campo, na última temporada do Salone del Mobile, meu “comparsa”, il bambino André, que clica mais freneticamente do que um paparazzo na cola da Madonna, levou um pito de um segurança lá no estande da Paola Lenti (italiana referência em mobília de fino trato, tecidos, revestimentos e acessórios, por aqui representada pela Casual, uma das mais tradicionais – e confiáveis – empresas de mobiliário europeu do pedaço). Quando a PR italiana nos reconheceu, se desculpou, mas catamos a conversa dela com o cara, claramente instruído a ficar “esperto” com registros fotográficos de brasileiros. Infelizmente, nossa fama, tal e qual a dos chineses nessas feiras internacionais, ainda é a de copiadores. Triste, mas, muitas vezes, procedente.
Enquanto isso, o fogo cruzado come solto. Uma parcela do mercado se acusa, mas mesmo alguns CNPJs tarimbados se sentam em cima da própria cauda, visto que uma ou outra marca ferradona do ramo da importação da fina flor da mobília, de vez em quando, sucumbe à tentação de fazer linhas “autorais” assinadas por arquitetos que seguem à risca a cartilha “cuspido e escarrado” (como se deturpou a expressão vintage “esculpido em carrara” para designar a semelhança, no melhor estilo “cópia malfeita”, das estátuas greco-romanas de mármore). “Conheço gente que abre sofás italianos para chupar até o jeito como as molas são ensacadas”, diz um arquiteto. “E o fazem tão bem que ninguém desconfia.” Neste caso, se valem da métrica “é melhor ser bom do que ser original”, inacreditavelmente cunhada por Mies van der Rohe, o mesmo que ensinou ao mundo que menos é mais. “Sem falar nos bazares e garage sales que certos empresários promovem com um montão de produtos piratas saindo pelo ladrão”, alfineta outro starchitect linguarudo.
“O fenômeno é conhecido especialmente no mercado de luxo. É claro que as cópias atingem um público mais amplo e podem até equivocadamente dar um certo prestígio a quem compra. No Brasil, isso está ligado a vários fatores. As instituições governamentais, infelizmente, têm políticas de protecionismo. E o empresário brasileiro gosta de ganhar muito e muito rápido sem, na maioria das vezes, criar. No setor do design, é normalíssimo encontrar até estabelecimentos nacionais que se copiam. E os instrumentos para se defender são realmente muito poucos”, diz o italiano Emanuel Bernini, que há 24 primaveras traz para cá brands-fetiche como B&B Italia, Poliform, Flexform, Paola Lenti e Living Divani. “Os produtos originais, por conta dos impostos, realmente chegam muito mais caros. Mas os profissionais que trabalham com isso – arquitetos, decoradores – têm a responsabilidade de levar essa cultura ao público geral. Em muitos casos, o trabalho é feito ao contrário: são eles próprios que indicam e endossam a cópia. Entender a diferença entre preço e valor é uma coisa muito sutil – valor, por exemplo, é saber que as peças originais podem durar de 20 a 50 anos se mantendo atuais.” Ele também cutuca o calcanhar de aquiles da capital do design: “O Salão do Móvel de Milão recebe cerca de 35 mil visitantes do Brasil todos os anos, quase 10% do total do mundo todo. Alguns vão para entender quais são as tendências. Outros, somente para copiar: tiram 55 fotos de uma gaveta ou de um armário específico. Depois de dois meses, a peça está em produção, pronta para ser oferecida para o público daqui”, conclui. Vestindo a pele dos caras, você deixaria um “replicante” tirar 55 fotos do seu suado projetinho para favorecer um impostor?
“Infelizmente, no Brasil, falta essa cultura. Estamos a anos-luz de distância de lugares que estudam, investem e promovem a mobília há muitas décadas. Esses países ainda não são vistos como os modelos que são, mas como meros objetos de ‘inspiração’ para gerar um design sem origem, sem assinatura, não-autêntico. Aos poucos, vemos a indústria nacional tomar corpo – chegaremos lá, pois o brasileiro é capaz de produzir sem copiar, já que é muito criativo! Mas ainda falta muita informação, e o consumidor é enganado. O arquiteto precisa aprender, e cabe tanto a ele quanto aos jornalistas do setor (ambos formadores de opinião), ensinar ao mercado que comprar cópias não é bacana. Cópia é crime, do mesmo tipo de outros tantos que vemos por aí – e que tanto criticamos. Copiar é roubar o investimento e criação de outro”, diz Lili Tuneu, que, ao lado da mãe Liliana, comanda a Collectania, outra marca tradicionalíssima que representa brands como Auping, Dedon e Kettal.
Alguma coisa está fora da ordem
Uma arquiteta bem-humorada apelidou André e eu de “xerifes da autenticidade”. Achamos graça no chiste, mas nem de longe queremos ficar conhecidos por esse papel nada edificante, assim como outras alcunhas pândegas que não correspondem aos fatos – tipo “os detonautas”, antonomásia decorrente das alfinetadinhas que damos, de leve e na melhor das intenções, cheios de amor no coração, em mostras como a Casa Cor.
Ora, somos essencialmente jornalistas, e entendemos que a imprensa segmentada, assim como a grande imprensa de maneira geral, tem o dever moral e cívico de apoiar a originalidade e denunciar que, como cantaria o Caetano, “alguma coisa está fora da nova ordem mundial”.
Aos fatos. Ana Paula Ferreira de Assis (jornalistona de enorme envergadura que me acompanha desde outras encarnações editoriais), Dé e eu perambulávamos feito Chapeuzinho Vermelho no bosque com nossos respectivos bloquinhos de ins and outs por uma famosa feira de design e avistamos, num dos maiores estandes da temporada, uma réplica mambembe da mesa Jet, de Guilherme Torres (projeto que acompanhamos há dez anos, do primeiro esboço à execução nas mais diversas matérias-primas, do Corian ao aço-corten). O impulso de fotografar foi imediatamente tolhido pelos lobos maus que xingaram nossas vovozinhas e nos expulsaram de lá, para depois ameaçar nos acionar judicialmente (estamos esperando a notificação até agora, aliás). “Infelizmente, ainda trabalhamos em um mercado que considera cópia um elogio. Não vejo nenhum meio de considerar elogio o que diminui o trabalho sério e comprometido de um designer e das maisons envolvidas neste processo. Cópia é crime, não só de quem fabrica, mas de quem comercializa e de quem compra também”, desabafa a empresária Larissa Vanzo, da NOS Furniture, que produz a Jet e todos os outros móveis assinados por Torres.
A inversão de valores se tornou prática tão comum nessa senda ao ponto de algumas pessoas se indignarem mais com a denúncia que fazemos do que com o ato de copiar em si (em outro contexto, seria como acusar a mulher que usa minissaia de incitar o estupro). Na ocasião da tal feira, fofocas dão conta de que até colegas respeitados da imprensa, além de produtores, set designers e assessores, condenaram a nossa atitude (por sinal, escorada nos princípios mais elementares da reportagem). Alô, ética, cadê você?
Realizem o grau do acinte: Sérgio J. Matos, designer mato-grossense considerado (inclusive por nós) um dos mais consistentes de sua geração, é um dos alvos. “Vi uma cópia de um trabalho que desenvolvo com comunidades ribeirinhas outro dia exposta numa feira. Liguei para a fábrica responsável. O proprietário, resignado, em princípio negou as semelhanças da peça (idêntica à minha, embora muito mal-acabada) e, no final, fez a oferta: ‘Você não quer assinar o balanço e acabar com toda essa polêmica?’ Não sabia o que responder”, conclui.
“É claro que muita coisa já foi feita e fica cada vez mais difícil criar algo. Coincidências acontecem e são fruto do chamado ‘inconsciente coletivo’. Já fizemos releituras, produtos que foram tendência nos anos 1960, 1970, com nova roupagem – não há nada de mau em resgatar clássicos que caíram no domínio público. O que estamos debatendo aqui é uma coisa muito mais grave: a cópia proposital, descarada e oportunista. Somos copiados tanto por fábricas de fundo de quintal, como também por empresas, designers e arquitetos conhecidos. Atitude lamentável e vergonhosa que só mancha a imagem de quem copia. A falsificação sempre existirá, porque tudo o que é bom, é copiado. Resta ao consumidor escolher o que quer dentro de casa: um produto com valor agregado ou uma imitação. Tive um grande professor no meu MBA em Gestão e Construção de Marcas de Luxo que dizia: ‘cópia, quem compra, merece!’. Acredito profundamente nisso”, diz Mariana Amaral, dona da Itens, que opera com jovens talentos como Ana Neute. “Por isso todos os nossos desenhos são patenteados – temos uma área que cuida apenas de registros e sempre tomamos medidas jurídicas para resguardar nossos direitos. Não por nos sentirmos ameaçados, mas por respeito aos nossos clientes, já que esses produtos são mal -acabados, mal-fabricados, não têm nossa garantia e não levam a assinatura dos nossos designers. Então, o que é visto inicialmente como uma vantagem por causa de preço, acaba se revelando um péssimo negócio”, conclui a jornalista e empresária.
Os maus hábitos dos especificadores
Alguns verões atrás, uma decoradora próxima, muito esforçada (mas pouco experimentada), pediu nossa orientação para finalizar o projeto de um cliente “exigente”, mas low budget. Ao dar de cara com as paredes vazias, recomendamos alguns fotógrafos incríveis e acessíveis, mas ela não se identificou com nenhum – queria “pedigree” e partimos para uma galeria grifada, onde ela se encantou com o trabalho de certo artista francês. O preço era alto, evidentemente, e a gente gastou saliva suficiente para encher dois volumes mortos da Cantareira tentando convencê-la de que valia cada centavo (e olha que não havia nenhuma comissão envolvida, já que o trabalho era tipo filantrópico – sou péssimo de negócios, como diria meu amigo Ali Majzoub). Nos desentendemos na hora, mas o assunto arrefeceu. Semanas depois, na melhor postura “eureca!”, ela nos enviou uma foto da parede completamente preenchida por três dúzias de fotos aquilatadas de monsieur “Lenda dos Retratos”. “Você acertou as seis dezenas da mega-sena, mulher?”, peguntamos. “Não, mané. Comprei um livro do fulano, debulhei, mandei emoldurar e vendi tudo para o morador por um preço maior do que toda a RT da obra.” Quem ficou sem resposta dessa vez, fomos nós.
Encabeçando a lista dos principais equívocos da arquitetura de interiores estão a apropriação indébita, a cópia e a falta de originalidade. Arte é fundamental na vida de qualquer pessoa, mas apostar nela exige, no mínimo, identidade e propriedade. Continuamos defendendo os novos talentos da fotografia como a forma mais autêntica e democrática de começar uma coleção sem apelar para reproduções excessivamente pasteurizadas e cópias vulgares (tampouco livros desfolhados).
Mas atitudes desse naipe infelizmente ainda são compartilhadas até por grandes arquitetos. Recebemos um bem famoso no nosso QG dia desses que nos mostrou, por A + B, bastidores capazes de ruborizar as bochechas da Monalisa (ela própria, a prima-dona de Leonardo da Vinci, alvo de incontáveis plágios). O cara abriu o portfólio de um falsificador de fazer inveja ao norte-americano Frank Abagnale Jr., um dos maiores falsários de todos os tempos – aquele que se passava por piloto da Pan Am, médico, advogado, professor e ganhou milhões em cheques falsificados. No final das contas, virou agente na área de fraudes do FBI e teve sua biografia convertida em filme dirigido por Steven Spielberg e protagonizado por Leonardo DiCaprio no espetacular “Catch Me If You Can” – ou “Prenda-me Se For Capaz” – (EUA, 2002).
No caso do Frank tupiniquim, sem se fazer de rogado, o sujeito comercializa réplicas quase perfeitas e ainda as batiza com os nomes das marcas lesadas. Tem poltrona tratada como “Casual”, sofá “Minotti”, divã “Artefacto”, cadeira “Dpot”. Mais assustadora ainda é a lista de clientes, que engloba nomes incensados do nosso mercado, especificando cópias sem dó, nem piedade. Ou seja: a hipocrisia, assim como o pop, não poupa ninguém. E todos nós somos praticantes – ou, pelo menos, coniventes. O primeiro passo é reconhecer a pisada na jaca e limpar bem os pés, já que esses pequenos “desvios de caráter” (não encontrei uma expressão mais leve, sorry) não passam em branco, como antigamente. Quer mais um exemplo? Há algum tempo vinha tentando publicar o projeto fabuloso de um arquiteto (extremamente talentoso e querido, por sinal) e ele continuava me enrolando, mesmo mediante chantagens (intimidade é uma merda, já dizia o poeta). Os móveis bafônicos das melhores procedências, que ele exibia orgulhoso em seu celular, compunham as cerejas vistosas do naked cake. A desculpinha-padrão “não está pronto ainda, mas, quando finalizar, é seu” migraria, três anos depois, para: “o cliente tem medo de sequestro e não deixa fotografar nem com reza brava”. – Ué, mas eu não vou dizer onde é a casa, quem é o morador, e muito menos dar a senha da porta para os meliantes na calada da noite. “Degordonauta (sim, ele me chama assim), o cara não quer.” – Ok, não insisto nunca mais. Corta. Estamos numa festinha animada no apê do sujeito e sou apresentado pelo próprio, provavelmente num lapso de amnésia alcóolica, ao tal cliente com fobia de assalto, que me olha com a cara desolê do Gato de Botas do Shrek e diz: “Meu maior sonho é que você publique a minha casa, mas o fulano disse que você falou que ela não tem o seu perfil”. Meu amigo arquiteto engasgou tão feio com o seu Aperol Spritz que quase fez a passagem. Mais tarde, eu entenderia o veto: metade da mobília era assinada pelo falsário das Minas Gerais. A cópia, vizinha do pecado, mora ao lado.
O Segredo de (Maria de) Fátima
Espionagem industrial é coisa séria. Com parques produtivos que empregam milhões de trabalhadores, centros de pesquisa e desenvolvimento e brutais investimentos em patentes, os grandes labels que fizeram história com suas marcas, da Coca-Cola ao ketchup Heinz, guardam fórmulas “secretas” a sete chaves – sobretudo no setor alimentício, onde miligramas significam quilômetros de distância entre um sabor e outro. O capitalismo é um jogo, afinal, de cartas marcadas – ganha quem melhor esconde sua estratégia. O KFC (imaginem a felicidade que teria o monarca português dom João VI carregando a tiracolo um daqueles baldões extra-large de asinhas de frango besuntadas em molho Tex-Mex) usa o mesmo tempero criado por Colonel Sanders em 1940. Dizem que essa receita, em particular, é guardada em um cofre de quase meia tonelada: fica a dúvida sobre o quanto disso é fato e o quanto é marketing (subterfúgio tipicamente estadunidense). No caso da Apple – para citar uma marca contemporânea que é pirateada à exaustão –, há relatos de que os empregados que possuem mais informações sobre os lançamentos são acompanhados de perto e têm suas vidas monitoradas por seguranças da companhia. Vale tudo na disputa pelas moedinhas do Tio Patinhas.
Segundo dados de 2016 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) – instituição que analisa e compara informações para prever tendências futuras e fornece dados para que os governos possam entender o que movimenta mudanças econômicas, sociais e ambientais – e da Intellectual Property Office – órgão do governo britânico que concede patentes e protege toda e qualquer propriedade intelectual –, mais de 63% das imitações têm origem na China e as marcas dos EUA são as mais copiadas entre todos os países do mundo. De cigarros a medicamentos, passando pelos brinquedos, as peças de vestuário, bolsas e relógios são os itens mais falsificados. No Brasil, o órgão responsável por conceder o registro de desenho industrial é o Instituto Nacional da Propriedade Brasileira (Inpi), que garante o direito de uso do design, sua comercialização e inibição do uso por parte de terceiros. Segundo o Sebrae-SP, esse registro de desenho industrial é válido por dez anos contados da data do pedido e pode ser prorrogado por até três períodos de cinco anos cada um. No total, a validade máxima de uma patente de desenho industrial no Brasil é, portanto, de 25 anos. Em solo verde e amarelo, o registro protege somente a forma externa do objeto, que deve necessariamente ser fabricado em escala industrial – criações artesanais não são passíveis de registro de patente, ok? No mais, regras sobre patentes em domínio público variam de país para país e, em geral, abrangem obras literárias e artísticas – vale citar o case explosivo trazido à luz em 2009 pelo escritor americano Seth Grahame-Smith, autor da obra “Pride, Prejudice and Zombies”, uma refação da trama original de Jane Austen escrita em 1813 e até então considerada um sopro feminista num mundo absolutamente patriarcal e colonialista. A versão “cópia legalizada” inseriu zumbis nonsense numa trama do tipo “pancadaria gratuita” e não chegou nem perto de abordar questões como o feminismo (a começar pelo fato de que foi assinada por um homem).
Quando lançou o livro “As Aventuras de Pi”, em 2002, o autor Yann Martel teve seu enredo comparado a “Max e os Felinos”, conto escrito pelo brasileiro Moacyr Scliar em 1981. Quando a imprensa internacional apontou as semelhanças, Scliar deu um depoimento sobre o caso, dizendo que o que mais o “irritou” foi Martel tê-lo esnobado, afirmando que aproveitou uma boa ideia “estragada por um escritor ruim”. Um sapo-boi-mutante entalado na garganta, né?
Nosso best-seller-fazedor-de-chuva Paulo Coelho também foi acionado juridicamente por “apropriação intelectual indébita” pelo menos em duas ocasiões, mas se safou das acusações num passe de mágica.
Réu confesso
Retomando o autoexercício freudiano das reflexões sobre a sonsice humana, que atire a primeira bateria portátil na minha cabeça quem nunca derrapou na curva. Nesse fluxo todo, ninguém (ou quase ninguém) é santo – muito menos eu. Muitas vezes, ao apresentar uma referência de imagem, seja para uma revista customizada, seja para uma campanha, os caras exigem que executemos os moldes ipsis litteris – evitamos mais do que mastruz com leite (tanto o drinque quanto a banda), mas óbvio que já tivemos que entubar.
No próprio ensaio que ilustra essas páginas, totalmente cravadas pelas nossas digitais, há muitas inspirações, como as fotos do Irving Penn. Embora nenhuma delas seja literal, não reinventamos a roda. E é claro que também já caí na tentação de recorrer aos torrents, esquema clandestino que facilita a vida na hora de baixar arquivos gigantescos. Diferentemente do download convencional, que depende do tráfego no servidor, o torrent permite obter arquivos pesados em partes fragmentadas, criando uma rede de computadores conectados que alimentam um troca-troca virtual, extraindo trechos de diferentes fontes, geralmente relacionados a conteúdos piratas de filmes e séries, tipo o Popcorn Time. Não recomendo: a qualidade da suruba é péssima (e, juro por Deus, não faço mais). Também seria impossível passar pela Liberdade com tanta frequência quanto eu passo sem jamais ter caído na tentação de comprar, emergencialmente, pelo menos um cabinho ching-ling de iPhone (Alice, meu coelho com nome de coelha – e sem nenhum problema de identidade de gênero – roeu tantos carregadores nos últimos anos que eu já poderia ser considerado acionista da Apple). Quando você espeta o dito-cujo na bundinha do seu aparelho, a mensagem é certeira: “este acessório pode não ser compatível e danificar a sua máquina”. Quem avisa, amigo é – feito a marca que roubou o nome da fruta e se apropriou do imaginário coletivo acerca do pecado original (quem aí nunca deu uma mordida nessa maçã?).
Mesmo quando se fala em domínio público, algumas firmas usam matéria-prima tão ordinária e descaracterizam tanto as proporções, que fariam Saarinen e Bertoia darem duplo twist carpados no caixão
Cambalacho
No verão de 1989, não adiantava tentar girar o dial do rádio: todas as FMs tocavam, freneticamente, o hit “Girl I’m Gonna Miss You” até lobotomizar a gente – lembro-me da Maria de Lourdes, doméstica da minha finada avó, balbuciando um montão de onomatopeias daquilo que ela entendia (ou achava que entendia) da letra, para delírio geral da molecada maledetta. Naquele ano, a dupla alemã Milli Vanilli levou o Grammy de Melhor Artista Estreante e teria o prêmio sumariamente confiscado semanas depois. Foram acusados de fraude num dos maiores escândalos da indústria fonográfica (a voz gravada não era a deles).
Pouco depois, na era da internet discada, em pleno bug do milênio, as teorias de conspiração se proliferavam mais do que lactobacilos vivos num frasquinho de Yakult aberto ao sol. Uma das polêmicas mais discutidas nos deliciosos fóruns de inutilidade pública era a do Kiss, que teria plagiado a estética de suas maquiagens com base no Secos & Molhados (banda de Ney Matogrosso cujo álbum de estreia, em 1973, trazia ele e os parceiros João Ricardo, Gérson Conrad e Marcelo Frias com os rostos pintados, servidos de bandeja num banquete). Logo depois, os hard-rockers norte-americanos explodiriam para o mundo com um make parecidíssimo. Entre zilhões de especulações, até hoje ninguém decifrou o enigma, mas atribui-se o fato ao “zeitgeist” da época.
Ironicamente, eu, geração-cara-pintada anti-Collor, quando debutei no ramo da comunicação social, lá no finalzinho dos 90s, ainda época da faculdade, me deparei com duas questões bastante antagônicas que, de certa forma, despertariam em mim uma certa sede pela defesa da originalidade. O primeiro episódio, no melhor estilo Milli Vanilli, já fora previsto pela dramaturgia brasileira: o da impagável Tina Pepper – espécie de Tina Turner dos Trópicos, personagem de Regina Casé que dublava as músicas gravadas por sua mãe gorducha na novela “Cambalacho” (Rede Globo, Silvio de Abreu, 1986) e virou estrela no “Cassino do Chacrinha”. Eu era aprendiz de assessor de imprensa de uma cantora cultuada, a Rosana, e, consequentemente, bastante imitada. Acontece que, durante uma apresentação num famoso show de calouros, uma candidata vencera várias etapas do concurso interpretando suas canções. Tudo muito bem, obrigado, não fosse um detalhe, digamos, ardiloso, que indignou o fã-clube da “deusa”: seus números vinham escorados por um playback que incluía a voz original de Rosana, em seus momentos mais decisivos (os dos agudos), incluindo um harmônico quebra-taça quase impossível de alcançar na música “Vício Fatal”, ironicamente versão brasileira (com todos os direitos reservados, que fique claro) de “Let’s Stay Together”, clássico de Al Green e, vejam só, um dos principais sucessos do álbum “Private Dancer”, da Tina Turner. Ou seja: a candidata cantava, de fato (e bem), mas impressionava mesmo a plateia se apropriando do agudo da Rosana. Levantei a lebre com um único e-mail que gerou um bafafá danado entre todas as partes, e a emissora, cheia de culpa no cartório, preferiu botar panos quentes mandando a jovem cantante, então uma das favoritas, de volta pra casa. Ela não aprenderia a lição, e ouvi dizer ainda outro dia, que continua sampleando trechos vocais alheios até hoje – talvez por isso não tenha se tornado uma estrela.
Logo depois eu ingressaria como estagiário no departamento de comunicação do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF/SP), onde fazia a “Revista do Farmacêutico”, na época em que mais se discutiu a questão das patentes no Brasil: o apogeu dos genéricos, introduzidos por aqui em 1999, Governo FHC, com José Serra à frente do Ministério da Saúde, baixando decreto autorizando a comercialização, por qualquer laboratório, de medicamentos cujas patentes estivessem expiradas. As embalagens deveriam ser padronizadas, mostrando uma tarja amarela e um grande “G” de Genérico. Como se sabe, foi uma revolução no acesso da população aos tratamentos, já que os preços daquela então novidade são, até hoje, no mínimo, 35% menores do que os originais. Paradoxalmente, fica a questão: há males que vem para o bem?
De volta ao balaio das frivolidades folhetinescas, uma das cenas mais alegóricas do controverso tema se deu em “Rainha da Sucata” (outro clássico de Silvio de Abreu, Rede Globo, 1990), quando a ex-ralé Maria do Carmo e a high-society Isabelle de Bresson, interpretadas respectivamente por Regina Duarte e Cleyde Yáconis (1923-2013), se encontram no jantar promovido por Laurinha de Albuquerque Figueroa (Gloria Menezes). A nova-rica e a quatrocentona se trombam na escada da mansão no Morumbi vestindo exatamente o mesmo modelito de listras pretas e saia reta azul marinho. Maria do Carmo pergunta, ingênua, se Isabelle também comprou o dela na Macy’s de Miami (popular loja americana de departamentos onde euzinho já comprei um pacotão de cuecas Calvin Klein XXL a U$ 25 – originais, é claro). “Non, ma chérie. O meu é da Maison Dior. Mas sabia que, para uma cópia, o seu está muito elegante?” Isso tudo para não citar “O Clone”, de Glória Perez, eleita na Espanha como a melhor novela brasileira de todos os tempos. Na trama (que eu não acompanhei), o irmão gêmeo de Lucas (Murilo Benício), morto num acidente, tem seus genes guardados, originando a primeira clonagem humana da história. Mas aí o papo é muito mais científico do que podem supor as divagações deste jornalista que vos escreve acerca das fraudes…
Negócio da China
Apesar de todo o atilamento, fazer um estudo antropológico aprofundado sobre a origem das cópias demandaria um tempo e uma expertise que eu, definitivamente, não tenho – logo, esse artigo autoral zero-científico não tem nenhuma outra pretensão que não seja a de propor um diálogo com o nosso mercado acerca do quiproquó e de seus infinitos desdobramentos, já que até arranha-céus faraônicos são replicados por aí (tanto a iraquiana Zaha Hadid, quanto o norte-americano Richard Meier tiveram edifícios vertiginosos reproduzidos em Pequim, por exemplo).
Em artigo publicado pelo “The New York Times”, em 2012, a jornalista alemã Didi Kirsten canetou que “linguistas e historiadores culturais atribuem a fama de copiadores dos chineses ao seu próprio idioma. Segundo eles, tanta energia mental e espaço cerebral são empregados para aprender os milhares de caracteres necessários para atingir a alfabetização chinesa que sobra pouco lugar para pensamentos inovadores”. Pasmem! Tudo bem que aprender mandarim é mais difícil do que publicar uma revista mais gorducha que o Alcorão no meio do caos do mercado editorial (depois de levar uma rasteira), mas, ainda assim, desconfio da sentença, já que, dos dois lados da Grande Muralha (uma das sete maravilhas do mundo que os astronautas conseguem enxergar lá do espaço sideral, diga-se de passagem), a China nos deu algumas das criações mais bambas das civilizações, para muito além do macarrão (foram eles que inventaram desde o papel de ler e escrever, até o papel higiênico; da tinta à escova de dentes; da pólvora à bússola; do garfo ao paraquedas). No site do Museu do Palácio Nacional de Taiwan, o órgão diz que “o ato de copiar uma obra foi fundamentado como uma forma de preservar o passado e promover inspiração na arte. Imitar o trabalho de um mestre como método de estudo era muito comum no universo da arte tradicional. Em alguns momentos, a técnica era usada para reproduzir cópias para uso pessoal; em outros, para obter lucro”. O texto afirma ainda que, para alguns artistas, o processo de “transmitir” era uma experiência muito pessoal, por isso preferiam ser fiéis ao trabalho original, enquanto outros adicionavam suas próprias interpretações.
Gurus da classe assinam e dão fé. Brian Ling (que não é Ching), nascido em Singapura, é um designer leader premiado, especializado em desenho estratégico (sua carreira passa por eletrodomésticos, serviços de saúde, instituições sem fins lucrativos, hotéis, lojas e serviços online). Atuou como gerente sênior na Philips, no Departamento de Pesquisas Estéticas, e na Nakamichi. Seu business da vez, a Design Sojourn, já é referência em Pesquisas Etnográficas e Design Thinking. Ling também é colaborador do site Tech in Asia, maior endereço online sobre assuntos tecnológicos naquele continente e uma das fontes consultadas para o texto que você lê agora. Em uma de suas colunas, ele diz que “(…) apesar de todas as mudanças – este ano a China comemorou 40 anos de sua política de abertura –, o país comunista tem um sistema de negócios capitalista. A gestão nacional é verticalizada com um approach do tipo ‘big brother’, e a disparidade entre ricos e pobres é imensa. Todo mundo tem uma pessoa acima de si a quem se reportar, e pensar fora da caixa não é algo encorajado. Como resultado, as pessoas preferem utilizar abordagens mais seguras – como as cópias”, diz. Há também outras questões culturais na equação. Do outro lado do planeta, as patentes são atribuídas aos produtos apenas se puderem ser vendidas ou licenciadas por royalties mais tarde. Patentes são vistas como ofensivas no Oriente e defensivas no Ocidente. Eles também têm uma visão interessante de que o mundo é “feito de uma especificação igual”. A maioria dos fabricantes chineses de eletrônicos acredita que os produtos são os mesmos, e tudo se resume em pegar aquilo, mudar suas cores, arredondar alguns cantos e revender. Por que gastar dinheiro para tornar algo minimamente diferente quando 90% de sua composição é a mesma? Pode-se comparar essa atitude à dos japoneses pós-Era Industrial, que afanavam criações ocidentais, faziam uma ou duas melhorias, e pronto: é meu e ninguém tasca! Somado ao fato de que muitas marcas e produtos não podem entrar em território chinês, a necessidade da cópia é impulsionada, segundo Ling. Trocando em miúdos, na China, a cópia é legitimada. Sem falar na explosão demográfica e na fartura-farturenta de mão-de-obra. Não à toa, tantas marcas de alto padrão da decoração brasileira atravessam o planeta tanto para garimpar móveis e acessórios já existentes, quanto para produzir peças sob encomenda – conheço (e você provavelmente também conhece) empresários (e arquitetos) que carimbam o passaporte para lá pelo menos três vezes por ano.
“Alguns arquitetos/decoradores vão em bando para Milão para copiar os lançamentos e serem vistos em festas e eventos. Gente malvestida com as melhores grifes, que posta em suas redes sociais o retrato da desinformação. Enquanto não forem a museus, galerias, universidades e se educarem, não teremos como combater as cópias”
A (nada) difícil arte da apropriação
Como explicar a semelhança estética entre criações, seja uma cestaria brasileira indígena de cinco séculos atrás, com um artefato tribal feito ao mesmo tempo na África do Sul, seja uma peça do Seu Fernando, da Ilha do Ferro, nas Alagoas, com o wabi-sabi oriental? O termo alemão “zeitgeist”, livremente traduzido como “espírito da época”, fala sobre o conjunto do clima intelectual do mundo, que, na era da globalização, embaralhou de vez o input criativo ligado à identidade cultural. Tem gente que vê uma imagem no Pinterest, “esquece” que viu e certo dia acorda com uma ideia epifânica.
Não é raro ver desfilar pela quase inalcançável calçada da fama do universo das artes plásticas obras com um certo perfume déjà vu. Mas alguns replicantes da atualidade levam a coisa longe. Figurinha carimbada – e repetida – nos causos recentes de acusações de plágio com obras que remetem a trabalhos já consagrados (ou, pelo menos, surgidos antes dos dele), Tyler Shields acaba de divulgar sua nova série “Paint”. Não precisam duas miradas para sacar que se trata de parentes consanguíneas – porém sem guarda compartilhada – da já conhecida “Sexual Colors” (2015), do artista plástico e galerista brasileiro Gabriel Wickbold, velho conhecido dos Decornautas, que já há algum tempo anda reverberando em participações vultosas em feiras como a Art Basel. Ou seja: Wickbold apresentou seu trabalho do lado de lá do Atlântico bem antes do seu “clone”, mas ainda é peixe pequeno na indústria gringa.
A reputação do premiado fotógrafo estadunidense já fora tingida com outros borrões. Até a incensada Annie Leibovitz teve seus retratos sorvidos muito além da mera “inspiração” para Shields – autora, entre outros, do clique icônico para a “Rolling Stone” em que John Lennon, nu, abraça Yoko Ono, desta vez ganhou um repeteco de sua também pop Whoopi Goldberg na banheira, clicada para a “Vanity Fair” de 1984. A sequência de processos se acumula nas costas do sujeito, que vem sendo acionado por gente do naipe de Ryan McGinley, Roberta Bayley, Nick Veasey e até do também polêmico Terry Richardson, entre outros figurões que tiveram suas imagens parcial ou literalmente reproduzidas. Por aqui, outros causos: após ser desclassificado do Wildlife Photographer of the Year de 2017 por usar um tamanduá empalhado na foto vencedora, o brasiliense Marcio Cabral declarou à imprensa que “não forjou a cena” – mesmo assim, devolveu o dinheiro do prêmio (R$ 6 mil) e disse que não vai recorrer da decisão. Também escandaloso, Eduardo Martins – suposto sobrevivente de um câncer e suposto surfista e suposto fotógrafo especializado na cobertura de conflitos bélicos – foi desvendado um fake completo pela BBC, mas isso só depois de romper a barreira dos centenas de milhares de followers no Instagram e, claro, de ter seu material falsificado publicado pela própria BBC. No dia em que a máscara caiu, o tal Martins, que ninguém havia conhecido pessoalmente, mandou seu último sinal de fumaça via WhatsApp: “Estou na Austrália e tomei a decisão de tirar um ano sabático. Vou cortar tudo, incluindo a internet e o Instagram. Também vou deletar meu WhatsApp, fiquem com Deus”. E evaporou.
Contrariando as estatísticas de que os maus são todos covardes (e, por isso, fogem ao debate), o fotógrafo asiático Daryl Aiden Yow soube retroceder após ter seu plagiarismo revelado: “Errei ao mentir que as imagens que publiquei eram minhas. Usei trabalhos de outros fotógrafos e até de bancos de fotografia como se fossem meus. Até criei textos para intencionalmente enganar meus seguidores. Estou profundamente arrependido”. Desculpas aceitas, Yow: quando um erro é reconhecido, segue o baile – quando não é, a gente para a música.
A discussão acerca da autoria sempre gerou melindres no universo plástico. Pense no inglês Banksy, por exemplo, gênio do street art originalmente conhecido por criar novas obras a partir de imagens consagradas. Picasso escreveu certa vez que os artistas ruins imitam e que os grandes, roubam. Banksy, principal vértice da arte de rua britânica, foi sagaz: tem um trabalho em que risca a assinatura do Picasso e coloca a dele em cima.
O multimídia paulista Gustavo von Ha, representado pela Galeria Leme, soube brincar com o antagonismo entre cópia, simulação e imitação como poucos. Com a ideia de que “somos seres complexos e nossa formação se dá inteira pela imitação”, em 2008 causou frisson com uma coleção de trabalhos que se valem de convenções artísticas para, com elas próprias, confrontar relações entre verdadeiro e falso no mundo contemporâneo, evocando nomes como Leonilson – e arrancando elogios da crítica especializada. “Nosso aprendizado todo passa pela repetição e pela imitação, por isso está ligado diretamente às cópias: um artista copia seu mestre, faz desenhos de observação; a gente faz fotografia, que é também uma representação. Aprendemos a falar por repetição, inclusive um novo idioma”, ele diz. “Essa necessidade de originalidade das coisas, na verdade, surgiu ainda no século 18, quando os ateliês dos artistas não contavam com uma autoria única, já que eram de grupos que estavam juntos, e a assinatura começou a ser exigida a partir das primeiras falsificações por incentivo do mercado”, explica. “O que é autoria? É uma questão sem resposta fechada. Em um mundo hoje onde todo mundo gera informação audiovisual, a autoria acaba ficando mais diluída. Como, de fato, conferir autoria para uma pessoa só? Em que medida nossa formação e nossa visão individual do mundo como autor é legítima, já que nosso próprio aprendizado é constituído por cópias e repetição?”, questiona. “Vermeer produziu apenas 34 telas em vida. Existe uma teoria de que ele tinha uma fase inteira cristã que nunca foi encontrada. Um falsificador uma vez se aproveitou disso e fez três obras, que o mundo acolheu imediatamente até perceber que eram falsas.” Foi quando notou exatamente esse embasamento na sua formação que surgiu com a série “Tarsila”, por exemplo, de obras nascidas do espelhamento de outras daquela que considera a primeira artista de fato a conferir aspecto moderno à nossa arte. “O caso do projeto é de cópia fiel: consiste em copiar, linha por linha, alguns desenhos da série da pintora a partir de uma seleção bem específica que engloba apenas os trabalhos que ela fez justamente para serem reproduzidos depois, como os para ilustrar o livro ‘Pau Brasil’ de Oswald de Andrade”, conclui, com o que buscou explorar a ideia de duplos e de recriação da realidade através da ficção.
Em tempos em que a rede mundial de computadores saiu de uma máquina cúbica para pequenos dispositivos portáteis e telas cada vez mais planas, a versão metafórica da conexão que a internet vem estabelecendo entre pessoas e ideias desde meados dos anos 1990 cada vez mais aproxima os afins e fortalece o chamado “imaginário coletivo”. Não bastasse a tal da teoria de que apenas seis graus nos distanciam de qualquer outra pessoa do mundo –, o compartilhamento e o acesso facilitado e instantâneo a criações e criadores pode colocar qualquer um num pé de igualdade informativa muito equivalente: com o Instagram na ponta do polegar e o Pinterest na do indicador, é quase como se fôssemos todos abastecidos pelas mesmas referências criativas, que pulsam aos olhos a cada atualização, e são igualmente compartilhadas on e off-line, surfando em contextos sócio-político-culturais parecidos.
Por ser quase impossível não trombar com esse leva-e-traz espontâneo, cunhar a autoria de um projeto fica progressivamente mais complicado – assim como criar algo de fato genuíno. “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, há séculos previu Lavoisier na ciência. É inevitável, afinal, que o que a gente é e que o que a gente faz seja consequência de tudo o que consumimos em um equilíbrio fluido com a operação dos agentes biológicos de que somos compostos. Mas a forma como esse “capital cultural” é mastigado e, sobretudo, regurgitado, ainda é muito íntima, e, por mais que carregue essa impossibilidade de isenção, porta também a responsabilidade de dar nova utilidade a esta matéria.
Para a Constituição, a cópia de uma obra intelectual (música, literatura, pintura, fotografia ou coisa que o valha) configura crime de plágio por obviamente violar os direitos de autoria de outra pessoa.
À parte a “honra” de dividir a lista de vítimas do copiador profissional junto a nomes de peso da câmara escura, ter o trabalho plagiado pode ter efeitos muito mais devastadores do que uma suposta homenagem. Neste contexto, Wickbold artista brasileiro menos conhecido do que os seus colegas lesados, depara agora com o esforço maior de defender a singularidade de suas imagens. Para ele, é como estar 100% seguro de algo e, ainda assim, ser desacreditado. “Como vou apresentar nos cenários internacionais o resultado dos meus mais de dez anos de trabalho sem ser imediatamente sugerido como replicador daquele que recentemente estourou com o retrato da atriz Kathy Griffin segurando uma máscara ensanguentada de Donald Trump? A conduta controversa de Tyler Shields já é bastante conhecida, mas o que (ou quem) dita a força de alcance de uma mensagem em um mundo com mais de 7 bilhões de habitantes e bits acelerados?”, diz Gabriel. Ser original, realmente, não é para os fracos.
Cópia é ilegal, é imoral – e engorda
Jovens e “sangue-nos-olhos”, Thiago Barelli e Laio Gastaldello, sobrenomes e pronomes por trás do Barelli & Gastaldello Advogados Associados, tinham mais em comum do que apenas um grupo de amigos. Partilhavam dos mesmos interesses jurídicos de deixar de lado grandes escritórios para se dedicar com mais afinco e atenção aos poucos – e muito bons – clientes. Juntaram as carteirinhas da OAB, seus “scores” vultosos, e deu no que deu. “Criamos um escritório personalizado onde conseguimos fazer um trabalho bem criterioso e específico, demonstrando nossas estratégias para operar de maneira bastante correta e responsável”, diz a dupla. Laio, habilitado em Insolvência pela Universidade de Fordham, nos Estados Unidos, e pós-graduado em Processo Civil pela Faculdade de Direito de São Bernardo e em Direito Empresarial pelo Insper, soma anos de vivência como coordenador do setor cível e sócio de um grande escritório, e é especialista em Direito Desportivo e Empresarial. Já Thiago domina os segmentos Tributário e Civil – tem pós-graduação pela Escola Paulista de Direito e pela Universidade de Lisboa, além de mestrado por esta mesma instituição. Foi toda essa bagagem que comportou o material para poder falar de direito de uso, plágio e propriedade intelectual na entrevista a seguir.
POP-SE: Mais como cidadãos do que como advogados, como os senhores avaliam a polêmica das patentes do ponto de vista pessoal, no que tange à democratização de determinados produtos?
Barelli & Gastaldello: A queda de patentes da indústria farmacêutica no Governo FHC, com a liberação dos genéricos, foi um marco no crescimento econômico e uma manobra social importantíssima na nossa história recente, considerando o acesso muito mais facilitado da população aos medicamentos – que deveria ser um direito de todos (mas que jamais fora). No mercado dos bens de consumo, muito mais supérfluo do que as condições de saúde no Brasil, o produto original sempre esteve ligado mais à ideia de exclusão do que de exclusividade, o que também, obviamente, denuncia uma discrepância econômica vexatória entre as camadas populacionais. Sem dúvidas, a tarefa mais difícil desta questão é fazermos a separação entre o cidadão e o advogado, pois ambos se completam. Sempre somos cidadãos, ainda que no exercício da profissão, e entendemos que essa é a principal ferramenta para um bom profissional. Sobre a pergunta, acreditamos que a queda de patentes no mercado de bens de consumo poderia gerar duas consequências distintas, pois, se, por um lado, traria a uma camada da população bens outrora inimagináveis – face o valor de aquisição, gerando a tão sonhada inclusão social –, por outro, poderia acarretar em um certo desestímulo por parte das sociedades empresárias que investem em inovação, uma vez que não haveria grandes vantagens financeiras e as outras sociedades empresárias poderiam se aproveitar livremente da invenção. Há que se buscar um meio termo em que a propriedade intelectual é preservada, mas também se garanta acesso a toda a população, sendo essa uma tarefa árdua dos próximos governantes.
P: A indústria dos móveis, tanto no que diz respeito aos designers enquanto criativos, como aos grandes brands enquanto executores, é um dos nichos que mais sofrem com a questão de roubo de propriedade. Trata-se de um mercado desorganizado, que deveria se mobilizar mais?
B&G: Tal como em diversas outras atividades, muitos empresários da indústria de móveis deixam de realizar os registros de suas criações no Inpi e, em consequência disso, ficam desprotegidos perante terceiros. Os empresários, independentemente do ramo em que atuam, precisam entender que o registro é tão importante quanto as estratégias de marketing do seu negócio, pois, mesmo que estejam utilizando a criação por um longo período, e que esta seja reconhecida no mercado, há o risco de complicações jurídicas decorrentes de produtos semelhantes, sendo de fundamental importância nesses casos, para a apuração do real detentor do direito, no mínimo, o pedido de registro. Entendemos que o mercado de móveis necessita, sim, de uma atenção especial em relação a sua organização, começando por uma mobilização no sentido de que sejam realizados os devidos registros de suas criações anteriormente à divulgação e comercialização destas.
P: Como se defender? Do ponto de vista da Legislação, as normas de patentes no Brasil são compatíveis com as internacionais ou somos mais frágeis nesse aspecto?
B&G: O princípio da boa-fé é fundamental para que seja realizada uma análise acerca de questões relacionadas à apropriação indébita e ao direito autoral, independentemente da natureza da obra/produto. Somente a partir da análise deste princípio se pode extrair a resposta sobre o real intuito do autor acerca da criação. Apesar da complexidade em descobrir se a criação foi realizada de boa ou má-fé, sempre existem indícios que indicam a resposta. A vontade é o elemento essencial para a caracterização do uso indevido, considerando que, nos casos de apropriação indébita ou cópia de obra/produto já existente, o “criador” já tinha o intuito de se aproveitar de outra pré-existente ou deixou de agir com o zelo necessário para verificar sua existência. Em que pese a visão do brasileiro comum ser de que a nossa legislação é frágil e inferior às legislações internacionais, tal crença não condiz com a realidade. Nosso país possui um número elevado de leis e tratados internacionais relacionados à questão da propriedade intelectual, que, por si só, já deveriam garantir segurança aos inventores. O problema está na insegurança jurídica, causada por diversos fatores, tais como a corrupção, a instabilidade política, a falta de supervisão do Estado e o ativismo judiciário. Desta forma, há plena compatibilidade entre as normas brasileiras e as internacionais relacionadas à propriedade intelectual, cabendo agora aos operadores do direito zelar pela correta aplicação.
P: Sabemos que se trata de uma questão subjetiva e com inúmeras variáveis mas, ainda legalmente falando, no caso de uma disputa judicial de marcas em relação a determinado produto – uma cadeira, por exemplo –, o que diferencia uma cópia de um original? O registro anterior do desenho técnico ainda é a prova mais contundente?
B&G: Cada caso é um caso e o tema é absolutamente subjetivo. Em síntese, a diferenciação entre produtos é realizada por meio de uma criteriosa análise, realizada em etapas. Tais etapas analisam as características identificadoras dos produtos, seus relatórios descritivos, suas funções e, principalmente, se o suposto produto copiado foi reproduzido, mesmo que parcialmente, do produto existente. O registro anterior no Inpi, seja da marca, seja da patente ou desenho industrial, é o indício mais concreto de quem é o real detentor do direito. Porém tal prova pode ser refutada caso haja a comprovação, pela outra parte envolvida na disputa, da sua boa-fé e anterioridade na utilização da marca ou do produto.
P: Diz-se por aí que, caso um produto acusado de cópia tenha uma ou outra alteração mínima no seu shape – tipo uma diferença de angulação ou um parafuso a mais ou a menos –, tal mudança, teoricamente, já descaracterizaria a cópia, efetivo do qual se valeriam alguns players da indústria do plágio. Isso procede ou é lenda urbana?
B&G: É lenda urbana. É necessária a análise de diversas características do produto para que seja constatado se é original ou cópia. Logo, não são pequenas alterações de algo pré-existente suficientes para descaracterizar uma cópia, pois é necessária a comprovação da inovação do novo produto. Caso o proprietário do produto existente anteriormente entenda que se trata de uma cópia, é cabível a distribuição de ação judicial, solicitando indenização por uso indevido do produto. No caso de produtos físicos, além da ação de obrigação de não fazer (comercializar), existem casos inclusive de busca e apreensão, além, é claro, das respectivas penas de multa pelo uso indevido.
P: Os senhores conhecem, na história do Judiciário brasileiro, algum caso exemplar em relação à caça de propriedade intelectual de determinada obra?
B&G: Sem dúvida um dos casos mais enigmáticos no Judiciário brasileiro relacionados à propriedade intelectual é a disputa envolvendo a Apple e a Gradiente pela utilização da marca iPhone. Em suma, a Gradiente efetuou o pedido de registro da marca em meados de 2000, porém, por conta da morosidade do Inpi em analisar o pedido, somente houve a concessão em 2008, ocasião em que a Apple já estava comercializando o produto havia muitos anos, mesmo só efetuando o pedido de registro do selo no mesmo ano (2008). Após muitos recursos e disputas administrativas e judiciais, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela manutenção da propriedade da marca para a Gradiente, porém autorizou que a Apple a utilize sem qualquer custo, sob o fundamento que teria sido esta quem “popularizou” a etiqueta no Brasil. Deste modo, ainda que não tenha ocorrido a “caça” da propriedade intelectual, tal acórdão (decisão do órgão colegiado de um tribunal) mitigou o direito aos frutos advindos da marca, o que, na prática, para a Gradiente, perfaz o mesmo efeito. O processo ainda está em fase de análise de recurso perante o Supremo Tribunal Federal.
P: E como anda a questão do produto de consumo cultural que se propaga em cópias de qualidade duvidosa? Os senhores têm algum conhecimento desse status? Refiro-me aos CDs piratas que colapsaram a indústria da música mesmo antes da tecnologia dos downloads, ou aos DVDs piratas que os grandes centros de comércio popular insistem em vender…
B&G: Com a popularização da internet, aliada aos aplicativos e sites que facilitam o acesso a filmes, músicas, shows, etc., de forma lícita, bem como diante da ostensiva fiscalização do Poder Público, reduziu-se consideravelmente a prática de propagação de produtos popularmente conhecidos como “piratas” e que possuem má qualidade. No âmbito legal, a prática tem sido punida com veemência – tanto na esfera cível, quanto na criminal –, ressaltando-se, contudo, a falta de punição aos consumidores de tais produtos, que são os principais responsáveis pela questão ainda ocorrer.
P: Uma homenagem (ou tributo) a determinado designer, que tenha performance comercial, pode se esquivar da acusação de cópia, desde que assuma a inspiração na hora de fazer o marketing do seu móvel?
B&G: Depende muito. A assunção de inspiração, por si só, não autoriza a cópia do produto. É necessária a autorização do titular do direito ou a comprovação do requisito inovação para que não haja a responsabilização.