Uma ode à colossal Beatriz Segall, atriz-ícone da nossa dramaturgia, figura-chave em muitas conquistas da classe e persona que flanou como poucas na quintessência das artes plásticas brasileiras, como sugere o sobrenome que carregou – e cravou para a posteridade
Texto_Heloisa Tolipan
Retrato_Marcio Scavone
Os gestos elegantes de uma lady, a voz firme e o talento excepcional sempre direcionaram os holofotes sobre Beatriz Segall (1926-2018), desde que comecei a acompanhar o trabalho da atriz ainda na minha adolescência, na década de 1980. Ao começar a escrever este texto, lancei mão do “Dicionário de Nomes” e constatei, ao ler o significado de ‘Beatriz’: “Tem origem no latim beatus, que significa ‘feliz’, ou no latim Beatrice, de beare, que significa ‘a que traz felicidade’ ou ‘aquela que faz os outros felizes’.” Palavras perfeitas para a Beatriz que desejo homenagear aqui e que nos deixou no dia 5 de setembro de 2018, aos 92 anos.
No mundo das artes, ela foi muito mais do que a atriz que esteve no palco até os 89 anos atuando em “Nine, o Musical”, ou do que a intérprete da icônica vilã Odete Roitman, da novela “Vale Tudo”, da Globo,
escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères,
que, em 1989, no capítulo final, parou o Brasil de norte a sul, porque todos os espectadores queriam saber: “Quem matou Odete
Roitman?”. Você, que naquela época não vivenciou a experiência de ver o impacto que um final de novela podia causar no nosso País, está tendo a oportunidade de conferir a trama – considerada a melhor telenovela brasileira e exibida em mais de 30 países – em reprise pelas comemorações dos 30 anos do canal Viva desde junho. A Beatriz que trouxe tanta felicidade nos fazendo mergulhar em um mundo mágico de personagens se tornou uma diva entre as grandes do teatro e da tevê. Mas foi também uma verdadeira incentivadora, patrocinadora e lutadora pelas artes em um país tão turbulento como o nosso.
Vamos a uma viagem ao passado. Beatriz era filha de professores, cursou Letras, lecionou Francês, mas sonhava ser atriz. Nos anos 1940, conseguiu uma bolsa na Sorbonne para estudar teatro e literatura. E foi na França que conheceu Maurício Segall (1926-2017), museólogo, economista, autor teatral e um dos filhos do pintor, escultor e gravurista Lasar Segall (1891-1957) com a escritora e tradutora Jenny Klabin Segall (1899-1967). Um dos maiores nomes das artes, Lasar, que teve influências do impressionismo, expressionismo e modernismo, nasceu em Vilna, na capital da atual República da Lituânia, mas fixou residência em São Paulo, nos anos 1930, na casa-ateliê que hoje é sede do Museu Lasar Segall. Beatriz (Toledo, de solteira) se casou com Maurício nos anos 1950 e teve três filhos: o cineasta e empresário Sérgio e os arquitetos Mário e Paulo. Ela vivenciou e transitou profundamente entre as artes plásticas. Foi a sogra – já viúva de Lasar – quem idealizou o museu que foi criado em 1967 por seus filhos Maurício e Oscar Klabin Segall. As informações sobre a construção da casa-ateliê dão conta de que saíram da prancheta do arquiteto Gregori Warchavchik, concunhado de Segall e precursor da arquitetura moderna no Brasil.
O mobiliário e os objetos de decoração são assinados pelo próprio
Segall, seguindo um design característico da escola alemã Bauhaus.
Em 2017, quando o museu completou 50 anos, o crítico literário
Roberto Schwartz escreveu um texto sobre Maurício, do qual um trecho reproduzo aqui: “(…) Por sua vez, a devoção ao acervo pictórico do pai, tratado como um patrimônio da humanidade, da cidade ou da nação, e não da família, não tinha nada de burguês. A generosidade com que Maurício e o irmão financiaram o museu, ao qual doavam as suas coleções Segall, de grande valor, além de imóveis e dinheiro, pertence a um mundo surpreendente, sem mesquinharia, em que a arte conta mais do que a propriedade (…)”. Portanto, Beatriz Segall respirou arte 24 horas por dia em sua vida.
Ao conversar com o grande ator Ney Latorraca, ele comentou: “Beatriz Segall nasceu no mesmo dia em que eu, 25 de julho, dois leoninos! Ela fez uma das ações mais importantes para o nosso teatro. Criou uma companhia teatral e reinaugurou junto com o marido, Maurício, o Theatro São Pedro, em São Paulo, uma joia do nosso país. Amava-a como atriz e como mulher que lutava pelos direitos da classe. Fui com ela a Brasília uma vez e vencemos no que estávamos pleiteando para a classe. Uma voz potente!”. O casal Beatriz e Maurício criou a São Pedro Produções Artísticas e o Theatro São Pedro, uma construção de 1917 em estilo eclético, arrendado em 1967 e que ganhou fama como palco da resistência política e cultural. Entrei em contato com o empresário Sérgio Toledo Segall, um dos filhos de Beatriz, e ele me enviou uma cópia do lindo texto que escreveu logo após a morte de sua mãe. Com o título “Minha Mãe, uma Mulher do Século 20”, que teve uma versão resumida publicada no jornal “Folha de S.Paulo”, Sérgio descreveu essa ação de puro amor e empreendedorismo pelas artes.
“Em 1967, meu pai e minha mãe, junto com Fernanda Montenegro e Fernando Torres, resolveram arrendar o Theatro São Pedro, na Barra Funda, em São Paulo, que estava prestes a ser demolido, o reformaram e o modernizam, dando origem a um grupo teatral. Minha mãe voltou a atuar. Encenaram “Marta Saré” (de Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, com direção de Fernando Torres). Lembro-me do Antonio Fagundes, com 18 anos, cabelos compridos, um molecão, em sua primeira performance profissional. Logo em seguida, porém, veio o AI-5, que radicalizou a ditadura no Brasil. Ainda hoje também me lembro de todos aqueles grandes nomes do teatro brasileiro, no palco do São Pedro, no meio de um ensaio interrompido, ouvindo pelo rádio a leitura do famigerado ato, conscientes de que a peça que ensaiavam já estava condenada e seria proibida. Fernando chorava; Guarnieri ficou a um canto cabisbaixo. Meu pai andava de um lado para o outro, perdido e confuso. Ninguém ousava falar nada”, escreveu Sérgio.
E acrescentou: “Pouco depois, meu pai foi preso e minha mãe se viu obrigada a cuidar do teatro sozinha, enfrentando ameaças, a censura e as dificuldades financeiras. De novo me vêm à memória ela e o Plínio Marcos, ao lado da bomboniere no hall do teatro, enquanto lá dentro o público assistia a ‘Dois Perdidos Numa Noite Suja’ cheia de trechos censurados, quando chegaram dois agentes da censura federal para fazer um controle. O sujeito virou-se para mim, que tinha 14 anos de idade, e me deu um conselho: ‘Olha filho, quando esta gente (apontando o dedo ameaçador para o Plínio) começar a falar demais, com muitas ideias esquisitas, simplesmente pare de ouvir. Não pense!’ O autor de ‘Dois Perdidos…’ e tantos outros clássicos da dramaturgia brasileira não se aguentou e caiu na gargalhada na frente do sujeito. Como alguém podia dar um conselho destes a um menino, em pleno teatro? Não pense!!! Aqueles foram de fato tempos em que minha mãe foi mesmo uma mulher do século 20. Teve que reunir coragem para tocar o trabalho, cuidar dos filhos sozinha, tudo isso enquanto tentava defender meu pai e tirá-lo da cadeia”.
Paulo Zuben, diretor artístico-pedagógico da Santa Marcelina Cultura, organização social responsável pela gestão do centenário Theatro São Pedro de São Paulo, lembra a importância de um nome como Beatriz Segall: “Professora de formação, filósofa e grande atriz, com trabalhos importantes na tevê, no cinema e no teatro, Beatriz Segall foi peça fundamental na resistência cultural do Brasil. Foi sob direção de Beatriz e Maurício que o Theatro São Pedro passou por uma reforma e se reinventou, começou a receber espetáculos. A reinauguração aconteceu um ano depois, em 1969, com a peça ‘Um Inimigo do Povo’, escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen e que teve direção de Fernando Torres. Beatriz e Maurício Segall seguiram à frente do teatro até 1981 e estão marcados na história centenária do espaço, comemorada no ano passado. Ao longo desta trajetória, o teatro passou por diversas fases e reinvenções, recebeu grandes nomes da nossa música e, após passar por uma nova restauração, foi reaberto em 1998 como um novo palco para ópera. Atualmente ligado à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, desde maio de 2017 está sob a nossa gestão, da Santa Marcelina Cultura”.
Chegamos ao final dos anos 1970. Em seu texto, Sérgio Toledo relembra a entrada da mãe no mundo da televisão: “Foi quando ela conseguiu um espaço na Globo. O começo não foi fácil. Aos 50 anos, ela estava recomeçando do zero em uma grande organização. Era, então, uma atriz conhecida apenas no meio e, portanto, secundária dentro daquela grande estrutura. Como todo principiante, teve que engolir sapos, aceitar sua condição de subalterna e lutar. Mas não tardou a se impor e acabou por fazer novelas icônicas, como ‘Dancin’ Days’ e ‘Vale Tudo’, onde acabou por interpretar sua personagem mais famosa, Odete Roitman. Ela tinha, enfim, virado uma estrela! Eu, então, já tinha uns 20 e poucos anos, mas como me sentia orgulhoso quando as pessoas a paravam na rua para pedir um autógrafo, para conversar, para tirar uma foto.”
Gloria Pires, que em “Vale Tudo” interpretou Maria de Fátima em uma história que abordava a questão da desonestidade no Brasil, me contou suas lembranças sobre Beatriz Segall. “Desde o início da minha carreira sempre tive excelentes mestres. E Beatriz foi uma das grandes atrizes a quem sempre observei. Contracenamos juntas em ‘Dancin’ Days’ (1978), ‘Vale Tudo’ (1988) e ‘Anjo Mau’ (1997)”, comenta. “E qual a história de bastidores que você guarda na memória, Gloria?” “Ela não era melosa, piegas, mas extremamente carinhosa comigo. Quando contracenamos em ‘Vale Tudo’, minha personagem voltava de viagem deslumbrada, esbanjando termos em francês, o que me deixou muito insegura. Beatriz e Nathália Timberg me ensinaram truques da pronúncia. Foram maravilhosas! Beatriz era tranquila no backstage. Naquela época, as cenas eram enormes e ela estava sempre estudando. Gostava de ensaiar e bater texto. Muito atenta aos detalhes e perfeccionista.” A síntese de Beatriz para Gloria Pires é a seguinte: “Uma artista sempre interessada em coisas novas. Gostava de ser desafiada. Uma mulher de personalidade forte, sem nenhuma dúvida”, frisou.
O teatro foi a grande paixão de Beatriz, que sempre apostou em novos talentos. O múltiplo Miguel Falabella, que começou a carreira como diretor de teatro em 1984, justamente com Beatriz atuando no palco, contou: “Era uma dama em todos os aspectos. Vivemos uma relação intensa e poética durante a temporada de ‘Emily’ [peça baseada na vida da poetisa americana Emily Dickinson]. Serei eternamente grato por ela me ter aberto as portas para o teatro profissional como diretor. Ela confiou em um rapaz de 20 e poucos anos e muitos sonhos. Era uma mulher de atitude e que deixa muita saudade”.
Sérgio Toledo relembra ainda que a mãe “produziu e atuou em grandes textos e com grandes diretores, deixando saudades com ‘Emily’, ‘Três Mulheres Altas’, ‘Lilian’ e tantas outras peças. Grandes autores foram encenados por ela, como Shakespeare, Brecht, Tchekhov, Ibsen, Tennessee Williams, Dürrenmatt, Albee, Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Jorge Andrade. Mas minha mãe, a típica mulher do século 20, não se contentava só com isso. Tinha que se engajar nos grandes debates, mesmo quando eram impopulares. Foi uma das grandes questionadoras da meia entrada nos teatros e, por isso, foi atacada violentamente. Hoje, até economistas discutem a ‘síndrome da meia entrada’ e seu impacto no conjunto da economia. Todo mundo quer algum tipo de ‘meia entrada’. A questão pode ser polêmica, mas minha mãe tinha um ponto: cultura neste país já vive à míngua. É muito difícil sobreviver com dignidade, trabalhando nesta área. Quando se consegue algum apoio, de que adianta se na outra ponta o artista tem que devolvê-lo, subsidiando o público? A questão não era a meia entrada. Mas quem deveria subsidiá-la. O próprio artista? Ela também nunca se furtou a expressar suas opiniões sobre a cena política e a sociedade brasileira, mesmo quando estas não eram populares e incomodavam muita gente”. E a família e todos nós nos orgulhamos dessa figura do século 20 que fez muito pelas artes. Verdadeiro exemplo para as mulheres do século 21. Beatriz Segall, aquela do latim beatus, que significa “feliz”, ou no latim Beatrice, de beare, que significa “a que traz felicidade” ou “aquela que faz os outros felizes”. Nunca nos esqueceremos da chancela que a dama imprimiu nesta vida!
Beatriz Segall por…
Renato Borghi
“Eu me lembro disso: de uma colega de grande personalidade. Não era fácil! Se você dissesse uma coisa com a qual ela não estava de acordo, ela dizia: ‘Não estou de acordo, está errado, não seja burro!’. E eu tenho uma grande admiração por isso. Hoje em dia, uma coisa que falta muito na gente é essa franqueza, essa capacidade de se dizer o que se pensa.”
Marisa Orth
“A gente viajou o Brasil inteiro com a peça ‘Três Mulheres Altas’. Eu peguei uma pneumonia e ela me dava injeção (risos). Ela sabia dar injeção! Ela era meio enfermeira. Brava, mas supermãe. E muito boa atriz. Acho que ela gostou de mim como atriz. Isso me deu muita segurança.”
Ney Latorraca
“Amava-a como atriz e como mulher que lutava pelos direitos da classe. Fui com ela a Brasília uma vez e vencemos no que estávamos pleiteando para a classe. Uma voz potente!”
Paulo Zuben
“Professora de formação, filósofa e grande atriz, com trabalhos importantes na tevê, no cinema e no teatro, Beatriz Segall foi peça fundamental na resistência cultural do Brasil.”
Zizi Possi
“Conheci a Beatriz, lógico, como todo público brasileiro: a vendo no teatro e na televisão. A minha relação com ela acontece por meio do meu irmão, José Possi Neto, que é diretor de teatro e que dirigiu a Beatriz algumas vezes. Sempre respeitei muito, admirei muito, acho que ela é inspiradora para todo cidadão de bem e para todo artista. Cantar ‘Beatriz’ [de Chico Buarque, num tributo a Beatriz Segall no Masp, em 1/10/2018] foi um pedido do meu irmão, que achei superpertinente, e vim aqui para homenagear, fazer um tributo a ela.”
Regina Duarte
“A Beatriz preenchia a imagem de alguém elegante, chique, articulada, culta, extremamente humana no sentido de como eu acho que o ser humano deve ser: amplo, aberto, livre. Era muito segura dos seus sonhos e dos seus desejos, das suas aspirações. Fiz uma novela com ela, ‘Vale Tudo’, grande proposta dramatúrgica do Gilberto Braga. E aí vem ela com aquele personagem, que simbolizava a aristocracia [Odete Roitman], o poder na sociedade, e com toda a arrogância que esse poder traz. O jogo de cena com ela era deslumbrante.”
José Possi Neto
“A Beatriz era uma pessoa que tinha um olho incrível para perceber os outros. Muita gente a chamava de madame, virou até o apelido. Porque ela era uma mulher muito culta, casou-se com um homem de uma família muito rica. E ainda de cultura… quer dizer, ela era nora do Lasar Segall! Ela não tentava ser simpática só por ser simpática. Ela enfrentava as coisas. Beatriz era uma mulher muito honesta, de muita coragem.”