Cor, luz e movimento

Em entrevista à pop-se, o filho de Julio Le Parc relembra como o seu pai transformou os fundamentos das artes plásticas por meio de suas experiências visuais, emocionais e sensoriais baseadas em cor, movimento e luz – sem usar uma única gota de tinta

Ele não gosta de ser tarjado de cinético, óptico, geométrico ou  participativo. No entanto, todas essas classificações do fazer artístico – no todo e em parte – identificam a arte de luz, movimento e interação do argentino Julio le Parc. “Ele prefere experimentalista”, esclarece seu filho, o multimídia Juan Le Parc. Ele esteve em São Paulo para acompanhar as montagens da retrospectiva do pai no Instituto Tomie Ohtake, “Julio Le Parc: da Forma à Ação”, a maior no País até hoje, e da quarta individual na Galeria Nara Roesler. Somando sua primeira mostra no Rio, em 1963, é a décima vez que esse inconteste mestre das contemporâneas de 89 anos, maior nome da manipulação da percepção visual no campo da arte, expõe no Brasil. 

“Foi Le Parc quem influenciou minha primeira coleção de alta-costura. Suas placas de alumínio em movimento me levaram a fazer aqueles vestidos. Eu queria criar roupas que se parecessem com a arte mais moderna da época”, disse Paco Rabanne sobre a primeira coleção de sua maison aberta em Paris, em 1966, mesmo ano em que Neruda diria: “Adoraria ver museus Le Parc em Buenos Aires, no Chile, em Caracas, Guayaquil, no México, por todo lado”. Naquele ano, Julio le Parc também entrou para o glossário da intelligentsia devido a uma querela de repercussão geopolítica que acabou jogando o conceito da arte para outro patamar. O jovem desconhecido, artista oficial do pavilhão da Argentina, abocanhou o grande prêmio de pintura da 33ª Bienal de Veneza, quando o mais antigo evento das artes do planeta ainda premiava. “Era o auge do pop art. Rauschenberg havia vencido a premiação dois anos antes e a embaixada dos EUA fazia enorme pressão sobre os membros do júri da bienal”, revela Juan. “Os americanos haviam compreendido que sua hegemonia passava pelo american way of life e que, entre as ferramentas para seduzir o mundo com sua bandeira, estava a arte. Fizeram de tudo, mas Julio – um sul-americano, imagine você – ganhou.” 

Mas o tsunami causado por nuestro hermano não parou aí: seu trabalho, vencedor da categoria de pintura, ironicamente não possuía uma só gota de tinta! Era uma sequência de placas soltas de alumínio que se moviam graças a um motor atrás do painel, fio condutor do conceito cinético-óptico-geométrico-participativo do experimentalismo lúdico-hipnótico de Le Parc, como se viu nas obras com as quais o público pode interagir nas exposições paulistanas. “A Bienal de Veneza – a mostra autodenominada a mais de vanguarda da cena internacional, ainda presa ao classicismo da pintura, escultura e gravura – só foi adequar seu estatuto às novas maneiras de se pensar a arte dois anos depois. Julio não só venceu o americano Jasper Johns, como ainda promoveu uma mudança radical na obra de arte e em como pensar sobre arte. Suas experiências visuais, emocionais, perceptivas baseadas na tríade cor, movimento e luz, deram um salto quântico no status quo. Da noite para o dia, a tinta e o pincel ficaram anacrônicos”, arremata Juan.   

Foi a entrada no mercado do pós-guerra de minimotores rotacionais e novos materiais, como acrílico, alumínio, laminados e plásticos, o que possibilitou ao estudante de artes – levado por uma bolsa no início dos anos 1960 a Paris e onde acabou ficando até hoje – realizar suas ideias no limite da arte, da ciência e da técnica. Aposentando a tela, a bisnaga de tinta, o cavalete e o pincel, seu ateliê transformou-se em um laboratório de pesquisas com ferramentas e equipamentos industriais aplicados ao ofício. Sua ousadia pôs por água abaixo conceitos antigos que os professores da Escola de Belas Artes de Buenos
Aires haviam tentado ensinar ao jovem de família pobre de Mendoza que sonhava ser artista e acabou trazendo a experiência tecnológica para as artes plásticas e ser respeitado como um dos maiores de seu meio. Ao manipular a luz, a sombra e o som com equipamentos técnicos, no fundo muito simples, o revolucionário Julio Le Parc criou uma obra interativa, sem fronteiras, apreciada por cognoscenti e leigos de todas as idades, que permanece incrivelmente atual.  

“Julio le parc promoveu uma mudança radical na obra de arte e em como pensar sobre arte”

 

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Deu onda

Com irresistível efeito óptico, a arte cinética reúne nomes estrelados da produção latino-americana em experiência de gozo pela matéria

Por_LEONOR AMARANTE

A arte cinética se articula em torno de imagens rápidas, móveis, inapreensíveis, com uma chuva de átomos, moléculas, partículas em movimento. A imersão da luz e do movimento é o ato criador que, em transformação contínua, conta com a participação do espectador, decompondo-se no infinito. Nascida no pós-guerra, essa expressão tem como marco 1955, ano da mostra “Le Mouvement”, na Galeria Denise René, em Paris, da marchande francesa mais poderosa da época.

O boom do movimento ocorre na década seguinte, com exposições internacionais e uma produção teórica consistente.

Pela primeira vez um grupo de artistas latino-americanos emerge nesse cenário internacional com um jogo visual criativo – a chamada arte óptica ou perceptual, composta por luz móvel, o luminocinetismo, cujo movimento mecânico pode ser acionado por forças naturais ou pela ação direta do espectador. Donos de um novo saber, esses artistas são pioneiros em uma prática que coloca a cinética muito próxima da futura eletrônica, e chegam ao mercado internacional de arte. 

As novidades construtivas trans-espaciais nascem na produção do húngaro naturalizado argentino Gyula Kosice, nome emblemático da arte cinética e líder do antológico Grupo Madí, da Argentina. Poeta e intelectual, Kosice vê na participação do espectador algo mágico para fazer funcionar suas peças, assim como a incorporação conceitual do tempo e espaço. Suas esculturas manipuláveis, lançadas ao espaço como objetos não identificáveis, magnetizam o público, especialmente as obras em que, de forma pioneira, introduz o néon e a água, dando vida aos objetos.

O novo também é visível na obra do brasileiro Abraham Palatnik, nascido em Natal (RN). Assim como Kosice, ele já se dedicava às práticas cinéticas bem antes da exposição “Le Mouvement” espantar a capital francesa. Palatnik abre um capítulo dentro do movimento cinético pelo uso da luz elétrica e aproveitamento do processo experimental da tecnologia mecânica, lumínica e eletrônica. Antes dele, em 1948, a brasileira Mary Vieira desenvolve a obra eletromecânica “Formas Elétrico-Rolatórias, Espirálicas à Perfuração Virtual” (1948). A grande escultura de aço com movimento rotatório busca chegar à polidimensionalidade dentro do contexto de sua produção.

Antes de mergulhar no cinetismo, Palatnik busca formação em Mecânica, Física e Desenho na Palestina, onde permanece com a família desde os quatro anos de idade até a juventude, e volta para o Brasil em 1948. O retorno é, em parte, influenciado pelo crítico de arte Mário Pedrosa, que escrevia sobre uma arte emancipada, experimental e cuja teoria da Gestalt já germinava na vanguarda concreta carioca. Convive com os artistas Almir Mavignier, Ivan Serpa e Renina Katz, e entra em contato com o trabalho de Nise da Silveira, médica do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.

Pesquisador inquieto, ele realiza o experimento “Azul e Roxo em Primeiro Movimento”, recusado na 1ª Bienal de São Paulo de 1951, sendo incluído depois da falha no envio da delegação do Japão, e descoberto pelo júri internacional que lhe conferiu uma menção honrosa. A obra continha 600 metros de cabo, 101 ampulhetas de diferentes voltagens, vários cilindros girando em distintas velocidades por motores e um conjunto de prismas, lentes e formas através das quais a luz era projetada em uma tela de plástico semitransparente que cobria a frente do aparato, exibindo cores e formas controladas em um console por ciclos de 20 a 30 minutos de duração. É bom lembrar que a edição inaugural da bienal paulista reunia pinturas de artistas consagrados como Picasso, Fernand Léger, René Magritte e Jackson Pollock. O trabalho de Palatnik segue sua produção cinética e em 1959 atinge a marca de 20 aparelhos cinecromáticos. Cinco anos depois, já na Bienal de Veneza de 1964, se destaca e começa a ser conhecido internacionalmente. Ainda hoje continua ativo em suas pesquisas. 

Dentro do movimento, além de Kosice, outro argentino ganha notoriedade: Julio Le Parc, radicado em Paris, onde se notabiliza como líder do grupo Recherches d’Art Visuel (RAV), criado em 1960. Por meio da luz móvel, cria situações de variações instáveis – reproduz um universo muito particular como em “Luz em Movimento”, de 1962, refeito em 2010. Le Parc e seu grupo defendiam atitudes revolucionárias – como suprimir do vocábulo deles a palavra “arte”. “Preferimos considerar fenômeno artístico como experiência unicamente visual concernente à fisiologia mais que à emoção.” Três anos depois, eles inventam um labirinto com o qual defendem a ideia de que o espectador é indispensável à obra de arte coletiva. Materialidade, luz, efeitos ópticos, estruturas seriadas, participação do público: enfim, a arte cinética rompe definitivamente com a condição estática da arte.

A obra de Le Parc, “Anteojos para una Visión Distinta”, de 1965, e a do venezuelano Carlos Cruz-Díez, “Cromoscópio”, de 1960-1969, se aproximam da arte eletrônica. Na verdade, ambas desmitificam a ideia de que a arte interativa nasce com as tecnologias digitais e interfaces eletrônicas. Cruz-Díez amplia o entendimento sobre a cor e demonstra que a percepção do fenômeno cromático não está associada à forma, mas às estruturas espaciais – que ele chama de “cromoestruturas”, dando origem à fisicromia, transcromia, indução cromática e cromosaturação. O artista acredita que a cor, ao interagir com o espectador, converte-se em acontecimento autônomo capaz de invadir o espaço sem o recurso da forma, “sem anedotas, desprovida de símbolos”. 

Ainda da Venezuela, surge outro mestre do cinetismo: Jesús Soto. Com “Os Penetráveis”, de 1967, ele cria espaços em que se prendem linhas retas, entre as quais o espectador pode fruir a obra. Soto é um estudioso das obras de Kandinsky, Mondrian, Klee, Albers, Arp, Calder e Duchamp. Ele se aproxima das formas puras por meio do abstrato e do conceitual. Em “Repetições”, de 1951, envolve elementos de vibração, porque, para ele, a verdadeira arte abstrata só poderia se transfigurar com a performance do movimento. Soto utiliza planos com ripas que, ao se movimentarem, causam o efeito moiré, uma ilusão óptica causada pela sobreposição das curvas de linhas paralelas. O visitante é convidado a entrar na obra, misturar-se com o espaço e vivenciar um mundo abstrato de relações puras. O universo ali se configura a partir da cor, da luz e do movimento e a arte torna-se experiência de gozo pela matéria com o lugar e o indivíduo. 

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