Pop-se presta homenagem aos baluartes do nosso ritmo mais genuíno com um ensaio poético e arrebatador pelas lentes dos bambas Walter Firmo e Rui Mendes
“Aos 16 anos, quando me iniciei como fotógrafo, Walter Firmo já frequentava meu Olimpo de adolescente ávido por deuses. Quis o destino que por um longo tempo eu o perdesse de vista, assim como as suas fotografias. O reencontro recente confirmaria o que de alguma forma se prefigurara naquele tempo: ele resistiria. E resistiu. Sua sinceridade e imenso humanismo foram a via de determinação e o antídoto perfeito à contaminação e intoxicação de imagens de agora. Suas fotografias não falam de fotografias, não têm efeitos mirabolantes nem filigranas de estilo; vão direto ao assunto, são um libelo contra a pressa e a vulgaridade. Guiados por seu olhar singular e delicado, revisitamos um Brasil mítico que parece não existir mais – suas imagens nos convidam a passear pela nobreza e elegância da raça negra, onde Firmo desfila seu reflexo sem cair no folclorismo exótico e pieguice tão comuns a essas incursões. Li em algum lugar ele dizendo que fotografia é uma forma de educar; para ele talvez seja isso, mas, para nós, seu público, suas fotos são muito mais. Os retratos de Clementina de Jesus, Cartola e Dona Zica, Dona Ivone Lara e a magistral foto de Pixinguinha são comoventes e, desde já, clássicos que o inscrevem definitivamente no panteão da fotografia brasileira.”
Bob Wolfenson
“Em dezembro de 1994, fui chamado pela extinta revista ‘ShowBizz’ para fazer um retrato de Carlos Cachaça. Numa humilde casa de alvenaria, incrustada numa viela da favela da Mangueira, Rio de Janeiro, encontrei um senhor combalido pelos seus 94 anos, lúcido, e com uma vontade quase compulsiva de contar histórias. Seu Carlos Cachaça passou uma manhã de sábado falando de samba e seus protagonistas. Aquilo, de certa forma, nunca me fora totalmente estranho, pois cresci ouvindo as canções preferidas de meu pai, que era fã de Cartola, Clementina, Candeia, Nelson Cavaquinho e companhia, e também um bom contador de narrativas e fino conhecedor de samba. Emocionado com a experiência de conhecer figura tão valiosa à nossa cultura – afinal, acabara de fotografar o grande parceiro de Cartola, que com ele havia fundado a Estação Primeira de Mangueira –, tive a ideia de procurar mais sambistas da velha guarda que também tivessem trajetórias a contar. Após uma jornada investigativa, com a ajuda de alguns jornalistas amigos, comecei uma peregrinação por vários bairros da Zona Norte, de casa de sambista em casa de sambista. No processo, presenciei histórias deliciosas, como no dia em que liguei, numa sexta feira, para confirmar a foto de Guilherme de Brito, e sua mulher atendeu. Identifiquei-me e perguntei se estava tudo certo para a manhã de domingo. Ela me respondeu: “Meu filho, Guilherme saiu daqui quinta-feira à noite, só Deus sabe quando ele volta.” Felizmente, Seu Guilherme me recebeu no horário e desandou a contar causos de Nelson Cavaquinho, de quem foi o maior parceiro. É de Guilherme o verso: ‘Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor’, de ‘A Flor e o Espinho’. Com seu humor sofisticado e irreverente, soltou a pérola: ‘Nelson bebia, bebia e caía, e dormia, levantava, bebia, bebia, e caía e dormia. E assim levou sua vida’. No final da sessão de fotos, ainda me obrigou a almoçar uma deliciosa galinha ao molho pardo feita por Dona Nena. Enfim, fotografei muitas figuras interessantes e descobri um universo estético quase homogêneo, onde as casas, muito simples, faziam parte dos personagens. Hoje só alguns ainda vivem – gente importante para o samba e para nossa cultura, gente esquecida num País que desdenha a história, que singelamente tentei homenagear.”