A MARCENARIA CULTURAL – E ORIGINAL – DA ETEL, DESIGN REFINADOTIPO EXPORTAÇÃO, ENCONTRA NAS OBRAS RÚSTICAS DO ARTISTASERGIPANO VÉIO O CONTRAPONTO POÉTICO ENTRE DUAS LEITURASABSOLUTAMENTE ANTAGÔNICAS (MAS 100% BRASILIANISTAS) DO TRATOCOM A MADEIRA, SOB O RECORTE PRECISO DO FOTÓGRAFO RUY TEIXEIRA.
Quando estive com Lissa Carmona – CEO damarca Etel – para esta matéria (a convite dos meus queridos – correção: amados, bravos, irrequietos, ousados e malucos Allex Colontonio e André Rodrigues, corajosos agitadores culturais em tempos conturbados, com os quais tenho infinitas afinidades éticas/estéticas), ainda estava sob o impacto da abertura de sua loja Etel Milano, com a belíssima exposição Essenza (retomo este tema mais tarde). E me lembrei de uma história creditada ao mexicano Fabio Morábito, que trata de um escritor que tem a incumbência, delegada por sua esposa, de redigir uma justificativa para a ausência de seu filho, que havia faltado à escola. Enquanto ela se preparava para arrumar o menino e sair, o homem lutava com as palavras para elaborar a explicação perfeita – até que a mulher, que a essa altura estava esperando na porta, se impacienta, arranca o papel das mãos do marido/escritor, e, sem sentar-se, escreve rápidas linhas, assina e sai correndo. Era apenas uma justificativa escolar, mas, para o marido, um conhecido romancista, não existiam textos inofensivos e/ou sem preocupações com o estilo, sem o DNA de seu ofício. Morábito fazia uso desta história para acentuar o preciosismo com que o escritor usa das palavras, vírgulas e pontos para construir um texto perfeito. Mas servia direitinho para ilustrar a história da Etel e suas peças preciosas, onde as matérias-primas são utilizadas com esmero e cuidado, com uma artesania que, segundo palavras da própria fundadora da marca, se aproxima mais da alta-costura do que do prêt-à-porter. E, ao longo de algumas horas de delicioso bate-papo, esses conceitos foram minuciosamente salientados, reforçando o repertório elegante desta marca que completa oficialmente 25 anos mostrando o melhor do design de mobiliário no Brasil.
Lissa é uma mulher alta, esguia, de olhar penetrante, porém suave, de gestos fluidos, mas paradoxalmente incisivos. Nada dela parece desnecessário: tudo está no lugar certo – a mistura das texturas da roupa, o cabelo displicentemente arrumado, o tom de voz. Culta e elegante, assume que gosta de contar histórias – assim como os produtos de sua marca, que surgiu pelas mãos da mãe, Etel Carmona, uma das mais importantes personalidades do design brasileiro que, autodidata, antecipou os conceitos de empoderamento feminino no setor ao criar, há 30 anos, o núcleo do que se tornaria a Etel Interiores, uma das maiores expressões em móvel autoral em nosso país. Afirmando ter “intimidade com a madeira”, seu respeito aos processos de extração, controle e comércio das matérias-primas outorgou-lhe o selo FSC (Forest Stewardship Council), entidade internacional pioneira na certificação de madeiras. Por eles foi convidada a dar workshops sobre práticas de manejo da madeira, tamanho o seu conhecimento sobre o assunto.
Hoje, não se pode falar em design brasileiro sem mencionar os nomes desta criadora e sua empresa, e o cuidado evidente que transmitem em todas as etapas produtivas fez com que seu trabalho cruzasse fronteiras internacionais. Nada é por acaso, nada é gratuito, nada é instantâneo ou imediato – as relações e conceitos vão sendo tecidos ao longo do tempo, das impressões que recebem de seu vasto casting de designers e do contato pessoal da marca com os clientes, num processo que eu ainda não havia visto neste mercado. Conceitos como ética, autenticidade, história e brasilidade são perpassados por meio de um discurso silencioso: ao contrário do barulho emitido pelas grandes marcas do mercado – sempre ansiosas em estar na frente, dentro das tendências, em show-rooms impactantes –, a Etel busca a terceira via, um percurso quase oriental, uma relação literalmente feita de narrativas. Como a exposição que originou esta matéria, que cria um diálogo entre os móveis de nosso maior arquiteto, Oscar Niemeyer (1907-2012), e do artista sergipano Cícero Alves dos Santos, mais conhecido como Véio. Enquanto Niemeyer impõe seu traço sobre a matéria-prima e faz a madeira trabalhar para ele (como fez com o concreto em toda sua vida), Véio já se diz um tradutor – ele apenas interpreta o que vê nos galhos e madeiras que arremata para transformar em disputadas esculturas (e aqui me lembro de Michelângelo, que dizia simplesmente retirar do bloco de mármore tudo o que não era necessário para fazer uma escultura). A dialética do arquiteto com o artista popular vai além da forma: enquanto Véio diz que coloca a cor em suas esculturas para que nós (espectadores) “vejamos além”, Niemeyer afirma que suas peças têm que ser obrigatoriamente pretas, para não “desviarem da forma”. Em ambos o controle absoluto do desenho, da ideia/imagem primordial. Junto com estes contrapontos criativos, que expressam parte da história e da cultura brasileiras, esta emoção contida na forma – controlada por Niemeyer e percebida por Véio– foi o grande eixo condutor da exposição “Entre Arte e Design”, que introduziu oficialmente o brand na capital do design, em uma rua dedicada ao modernariato com nomes importantes e tradicionais deste nicho de mercado. Mais que uma loja de móveis de alta marcenaria, este espaço se propõe a promover a divulgação da cultura brasileira por meio do design e seus prováveis diálogos com arte, arquitetura, literatura, etc. Diálogo este magnificamente explicitado pelas lentes do imenso fotógrafo Ruy Teixeira nas fotos que ilustram estas páginas. Expandindo os territórios originais da exposição, que focava na relação Véio/Niemeyer, Ruy aproximou-se do acervo magnífico de Vilma Eid, uma das maiores conhecedoras (e colecionadoras) de arte popular do País, para reforçar que, além de Véio, a qualidade intrínseca dos leões de Nuca de Tracunhaém, dos ex-votos populares, do profano Chico Tabibuia ou de deslumbrantes expressões da arte sacra eram elementos precisos/necessários para transmitir seu recado particular. Em composições sucintas, a brasilidade de nossa arte popular tem um papo reto e direto com o mobiliário da marca. Só um autor original enxergaria as afinidades subliminares destes campos aparentemente opostos, e Ruy aponta essas correspondências em instantâneos intrigantes, sucintos.
Ao comentar com Lissa sobre a delicada e visível poesia presente na exposição “Essenza” – que reforçava não apenas seu estrelado corpo de designers, mas também sua xiloteca, relacionando cada móvel/objeto literalmente à sua origem (com uma caixa de acrílico contendo raspas da madeira desse produto e com uma bela pintura na parede retratando a espécie de árvore da qual esta foi retirada) –, ela abre um sorriso e me diz ter sido exatamente este o ponto básico desse novo show-room – um espaço que lembrasse, a ela, a poesia contida nas pequenas galerias às margens do Sena ou nos pequenos espaços milaneses fora do circuito mainstream. Não tem apenas um confesso compromisso com a história do design brasileiro (expresso em uma didática linha do tempo nas paredes de sua loja–matriz), em reedições de nomes como Jorge Zalszupin, Lina Bo Bardi, Oscar Niemeyer, Gregori Warchavchik, mas também com a construção de um novo ideário de design ao confeccionar peças com as assinaturas de Marcio Kogan, Isay Weinfeld, Arthur Casas, Claudia Moreira Salles, e da própria matriarca Etel Carmona, entre outros.
“Não somos vintage: somos uma galeria de design contemporâneo e moderno que será o vintage do futuro. Somos originais, nós fazemos os originais. Quando você comprar um Zalszupin reeditado por nós, estará comprando um original. Ele [Zalszupin] está vivo, acompanhou tudo, foi à fábrica, escolheu cada componente, participou de cada detalhe – onde isto não seria um original? Sempre corrijo quando alguém fala ‘comprei uma poltrona original’ – eu digo: ‘Você comprou uma antiga, porque a original é essa aqui’”. Lissa sabe das coisas.