Ás da camuflagem e precursor do bodypainting associado ao mimetismo em obras arquitetônicas, points turísticos e críticas ao capitalismo e ao consumo fugaz, o ativista chinês Liu Bolin é um dos artistas mais replicados do planeta – incluindo em sendas brasileiras
Uma certa poranduba da diáspora africana – que, tal e qual a mitologia grega, o folclore brasuca ou qualquer outro tropo lúdico oriundo das civilizações mais criativas que sempre têm na manga uma fábula fofa para justificar algum capricho da ciência – diz que em Cartago, norte do continente, dois grandes amigos, uma lebre e um camaleão, caminhavam por longas digressões com caravanas itinerantes para trocar cera e borracha por panos coloridos nas tendas dos comerciantes brancos. O mamífero apressado (o mesmo que perdeu a corrida por subestimar a tartaruga num outro conto da Carochinha) costumava largar suas peças pelo caminho e, quando se dava conta, precisava se meter em trapos cinzentos e desbotados para não ficar peladão, enquanto o réptil, com seu passo sossegado, juntava cuidadosamente muitos tecidos das mais variadas tonalidades e, assim, podia trajar garbosamente a cor que desejasse na hora que bem entendesse, colecionando um acervo de fazer inveja ao das irmãs Kardashian.
Sob o aspecto “Nat Geo”, essa habilidade raríssima no mundo animal – apenas algumas felizardas espécies de rãs, polvos, lulas e insetos são capazes de fazê-lo – acontece porque os camaleões possuem células epiteliais fascinantes ao ponto de inspirar uma das personagens mais populares da ficção-pop-HQ-cinematográfica, a mutante Mística, encarnada por Jennifer Lawrence na saga “X-Men”, do Stan Lee (Marvel, EUA, 2000-2018). Descobertas recentes dos institutos de Biologia e Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Genebra (Unige), na Suíça, apontam que a composição molecular consiste de uma fina camada de nanocristais flutuantes que envolve o corpo do lagarto. Essas células se contraem ou expandem em resposta aos sinais enviados pelo sistema nervoso e tal movimentação provoca uma divisão desequilibrada das partículas que acabam refletindo diferentes comprimentos de onda da luz. O resultado é o chamado mimetismo, que rapidamente camufla a pequena criatura ao ambiente, funcionando, entre outras coisas, como mecanismo de defesa – e a gente, que saiu da fábrica sem esse dispositivo extra, até que se esforça pra fazer parecido quando o calo aperta: pense no look militar dos soldados e no quanto é importante se fazer invisível no percurso até as trincheiras. Ou lembre-se daquele pretinho básico salva-vidas do seu guarda-roupas que disfarça os culotes sobretudo quando a noite cai.
Apesar de ser uma tendência relativamente recente no balaio das plasticidades contemporâneas, a pintura corporal remonta a eras antigas, quando o nômade das cavernas perambulava pelo período Cenozoico adentro com uma camada extra de pigmentos naturais encontrados em plantas – ou até mesmo besuntado com (argh!) sangue de outros animais. Recurso importantíssimo de definição cultural presente em várias sociedades, especialmente entre os indígenas, os hindus e os africanos – e, por que não, no ocidente representado pela maquiagem –, o ato de cobrir o corpo com tinta foi ganhando novos significados com o decorrer do tempo – para cada evento (caça, luta, casamento, morte) existia (e ainda existe) entre os povos um desenho específico. Hoje a estética é majoritariamente expressa por meio de tatuagens e, é claro, como manifesto artístico, seja ele aplicado sobre a pele, seja impresso em algo de vestir.
Pode-se dizer que essa fórmula criativa, em que o corpo passa a ser ou integrar a obra de arte, tal como conhecemos, partiu da premissa do francês Marcel Duchamp (1887-1968) de que tudo pode ser usado como arte. Assim, nomes como Yves Klein (1928-1962), Vito Acconci e Piero Manz são tidos como embrionários do estilo – apesar de nem todos eles terem executado, necessariamente, técnicas do body painting. Na cultura pop, o tema é tão bem-vindo e alcançou tanto êxito que desde Keith Haring (e sua fervidaça musa Grace Jones) até o baianos da Timbalada, a galera se rendeu à estética. Entre a geração de criadores em voga, Marina
Abramović, Alexa Meade, Natalie Fletcher, Emma Hack, Guido Daniel, entre outros, já flertaram com o gênero, em maior ou menor escala. Um dos nossos prediletos (programamos um ensaio com ele na próxima edição de POP-SE) é o italiano Johannes Stötter. Mas como o que importa é o aqui e o agora, tão camaleônico quanto o bicho é o trabalho do artista Liu Bolin, conhecido mundialmente pelo codinome “O Homem Invisível”. Folheie estas páginas e descubra, no melhor estilo “Onde está Wally?”, cadê o chinês. Aproveite para saber o que ele tem a dizer na entrevista exclusiva ao nosso publisher André Rodrigues.

“O ESSENCIAL É INVISÍVEL AOS OLHOS”
Por André Rodrigues
A China é um lugar relativamente indecifrável para a maioria que nasceu/cresceu no Ocidente. Fincados sobre raízes ancestrais mais fortes e aprofundadas (estamos falando de uma civilização cujos primeiros traços de humanidade inteligente datam de 780 mil anos atrás, a exemplo do extraordinário Homem de Pequim), eles não se permitiram invadir nem pela ostensiva campanha dos portugueses – em 1516, poucos anos depois de Pedro Álvares Cabral tomar o Brasil, o máximo que Duarte Barbosa conseguiu em sua frente no Oriente foi disseminar o nome “China”, e mesmo assim malemal: tanto que não se sabe até hoje se derivou do persa (Cin), do sânscrito (Cina) ou dos próprios chineses (Qin). Por lá existem nomenclaturas cotidianas que o estrangeiro sublimou: Zhōngguó (中国) ou Zhonghua (中华). Além das invenções mais notórias, dos chineses ganhamos o papel e a tinta (os deuses dos impressos sussurram seus ensinamentos em cantonês), itens que foram escoados da China para o resto do mundo por meio de destinos portuários como Shandong, província-protagonista, estrategicamente posicionada com saída direta e reta para o mar Amarelo, que conecta o país com as Coreias (do Norte e do Sul), além de desaguar no mar da China Oriental – este linkado ao Japão e, ching-ching, à Austrália e Américas. A mesma Shandong que serviu de berço ao célebre filósofo Confúcio (“até que o sol não brilhe, acendamos uma vela na escuridão”) também deu à luz Liu Bolin, artista-ativista chinês que desde 2005 escancara ao planeta as mazelas de seu país – fruto de uma organização sociopolítico-econômica truculenta e que se deve, em parte, a eventos como o Desabrochar de Cem Flores (movimento de 1956 que visou evitar que a China se tornasse refém de uma única escola de pensamento), que desembocou na sangrenta Revolução Cultural Chinesa: campanha político-ideológica levada a cabo a partir de 1966 pelo então líder Mao Tsé-Tung, cujo objetivo era neutralizar, sobretudo, intelectuais. Como na intelectualidade se encontravam alguns dos potenciais “inimigos do governo”, o ensino superior foi desativado de modo geral. Foi neste período que se alavancou a produção e distribuição de “O Livro Vermelho”, a coletânea de citações de Mao que exaltam sua ideologia e professam o culto à sua personalidade. Liu Bolin,
nascido na década de 1970 nesse caldeirão de loucurinhas, é consequência contemporânea disso tudo. “Busco expressar minhas dúvidas e confusões acerca de alguns problemas que, acredito, têm restringido o desenvolvimento da raça humana – problemas que nós, seres contemporâneos, precisamos enfrentar.” Conversamos com ele por e-mail num bate-papo nada confuso e com fuso de 11 horas. Confira!
POP-SE: Fale sobre suas técnicas.
Liu Bolin: Não faço uso de nenhuma tecnologia avançada. Muito menos do Photoshop. São pinturas corporais que faço à mão livre sobre mim mesmo, me usando como tela.
P: Devem ser processos longos e demorados, não?
LB: Depende. Nos casos mais rápidos, consigo resolver tudo entre três e quatro horas. Mas se o fundo tiver muitos detalhes e definição, como no caso das bancas de revistas ou das fotos em supermercados, então posso demorar entre três e quatro dias para finalizar. Tudo varia conforme o nível de complexidade da composição estética.
P: Os cenários são escolhidos pela plástica ou por outros motivos?
LB: Escolho cenários que me inspiram. Gosto de fazer com que as pessoas pensem através da minha arte – esse é meu objetivo. A escolha dos cenários também depende de um relacionamento contraditório com meu corpo e minhas intenções. Quando escolho ruínas como fundo, ou slogans publicitários e pichações com mensagens de protesto, estou expressando meus pensamentos artísticos mais latentes.
P: Quando começou a série “Hiding in the City”, que ganhou fama mundial?
LB: No dia 17 de novembro de 2005, quando a Prefeitura de Pequim decidiu demolir o bairro de Suojia, onde ficava meu estúdio. Como forma de protesto, decidi fazer uma foto me autocamuflando nas pilhas de entulhos do meu próprio estúdio. Queria chamar atenção para as condições em que atuam artistas como eu.
P: Qual você considera seu projeto mais incrível?
LB: A minha narrativa é mais importante do que os trabalhos isolados. Tenho buscado me superar nos últimos 12 anos – é uma maneira que tenho de me relacionar com o mundo. Meus trabalhos nascem de dois movimentos específicos: primeiro, a pintura corporal; depois, a comparação do meu corpo com a civilização que me cerca. Nosso corpo representa nossa individualidade. A civilização é criada por humanos, mas parece distante, opressora, como uma força anuladora de quem somos.
P: Quais seus próximos projetos?
LB: Comecei um projeto há três anos, em que convidei hackers para invadir meu site, roubar fotos, manipular essas imagens e subir tudo de volta no lugar das antigas. Logo mais, vou soltar essa série. Essa abordagem é um caminho para o futuro: estamos na era da internet e dos smartphones. Vou continuar a questionar as relações do ser humano com o meio ambiente e com os sistemas estabelecidos. Quero me desafiar – e a todos – mais.
P: Quem são seus ídolos?
LB: Meu professor na faculdade, [o pintor] Yuan Weiqing, e meu orientador de mestrado, [o escultor] Sui Jianguo. Ambos me influenciaram profundamente. Meus sonhos artísticos foram despertados por esses dois. Aprendi com eles que a busca pela verdadeira arte não pode se resumir à superficialidade. Meus artistas ocidentais favoritos são Modigliani e
Picasso, além de Andy Warhol.
P: Qual a mensagem final que você pretende transmitir?
LB: Eu me escondo nos meus trabalhos como forma de questionar a civilização humana e os relacionamentos contraditórios, intercanceladores e restritivos que são estabelecidos entre as pessoas e o meio ambiente reconfigurado por nós. Em 2013, comecei a incluir mais pessoas nas minhas imagens. Tirei uma foto numa cidade rural da China, onde os residentes foram brutalmente impactados por uma indústria química que se instalou na região. Para que um trabalho de arte atinja as pessoas, ele deve ser resultado não somente da técnica, mas também do pensamento e das lutas do artista. As repetidas batalhas que enfrentamos na vida terminam por criar um trabalho de arte – não importa em que forma. A realidade que inventamos é uma supressão da criatividade. O mundo real é construído de modo a neutralizar e impedir o exercício da criatividade humana. Busco expressar minhas dúvidas e confusões acerca de alguns problemas que, acredito, têm restringido o desenvolvimento da raça humana – problemas que nós, humanos contemporâneos, precisamos enfrentar.
“Karma is a bitch”
A uma consoante de distância, o hiato entre as definições de “ego” e “cego” pode desencadear desde comportamentos abusivos até arremedos criativos, passando por fofocas destrutivas e jornalistas ofendidos
Por Allex Colontonio
No inverno de 1965, a serviço da revista “Esquire”, o jornalista americano Gay Talese não desistiu da matéria com Frank Sinatra, então a celebridade mais incensada do planeta, após sua assessoria desmarcar o encontro zilhões de vezes. Da última delas, ele viajara de trem de Nova York até Los Angeles em vão – Sinatra estaria resfriado e a assessoria tentava, a todo custo, convencer o repórter de que seria melhor que eles intermediassem uma entrevista por escrito na era pré-e-mail. Talese resolveu inovar: conversou com pessoas à volta do ídolo e passou a observar, bem de perto, sua vida. Publicado no jornal “The New York Times” em abril de 1966, o artigo “Frank Sinatra Has a Cold” (“Frank Sinatra está resfriado”), um dos mais celebrados na história, marcou o nascimento de um estilo chamado New Journalism, que consiste no trabalho de apuro jornalístico acompanhado pelo storytelling antes reservado apenas à literatura. O texto conjura um retrato profundo de uma das figuras mais protegidas de sua época, e serve também de termômetro para a indústria das celebridades antes, durante e depois do surgimento de uma outra indústria, a dos paparazzi. Para ser mais didático, colo aqui um trechinho: “Frank Sinatra gosta de fazer as coisas ele mesmo. Quando o Natal se aproxima, seleciona dúzias de presentes para seus amigos e familiares, e faz questão de lembrar o tipo de joia que gostam, suas cores favoritas, o tamanho de suas camisas e vestidos. Quando a casa de um amigo músico foi destruída durante um deslizamento em Los Angeles, Sinatra foi pessoalmente ajudá-lo: encontrou uma nova casa, pagou todas as contas, supervisionou a chegada da nova mobília e acompanhou os últimos detalhes, da reposição da prataria e linho até a compra de roupas novas. O mesmo Sinatra pode, de uma hora para outra, explodir em um rompante de ira e intolerância caso o menor dos detalhes esteja fora do prumo. Quando um de seus assistentes trouxe um cachorro-quente com catchup, algo que Sinatra aparentemente abomina, lançou o frasco na cabeça do rapaz. A maioria dos homens que o acompanha – e não são poucos – é grande, corpulenta. Mas isso não parece intimidá-lo quando perde a paciência. Seus homens nunca reagem. Frank Sinatra é o poderoso chefão”. Catou?
“Busco expressar minhas dúvidas e confusões acerca de alguns problemas que, acredito, têm restringido o desenvolvimento da raça humana – problemas que nós, seres contemporâneos, precisamos enfrentar”
Mesmo às vésperas do fechamento desta edição, que rolou em dias hiperpolarizados em que bancar o radical quase xiita era condição praticamente sine qua non de sobrevivência tivesse você um partido ou não, e não sendo adepto daquele jornalismo coronelista, em que o dono da caneta dispara sua metralhadora cheia de mágoas para cutucar os desafetos e se vingar de maus-tratos, não poderia perder a chance de exercitar meu coté Gay Talese. Pena que os personagens envolvidos neste enredo não gozem de quaisquer expressividade tanto para que eu lhes apresente maiores detalhes sobre os mesmos (juro que desconheço), quanto para que você possivelmente se interessasse por eles. Mas caso tenha curiosidade acerca de gossips de bastidores e 15 minutinhos para ler o bla-bla-blá sincericida que aplicamos no caso dos textos autorais (como este o é), prossiga. Senão, salte para a página seguinte, porque conteúdo bacana para muito além do nosso quintalzinho não falta nessa POP-SE (quase tão gorducha quanto eu). Ao ponto: à parte toda a saga da realização, da arregimentação da equipe, da busca de parceiros e de tudo o que envolve a viabilidade da coisa, os loopings, anseios, celeumas, dores e delícias por trás de cada pauta curada para uma revista são tamanhos que renderiam um reality show bem explosivo. Numa edição de estreia, quando os formatos são cuidadosamente estudados e experimentados em inúmeras versões, as adaptações se fazem presentes o tempo inteiro, e é aí que a coisa fica complexa mesmo. Foram mais de oito meses dedicados a este projeto, que reúne um time estelar cuidadosamente montado por mim, pelo André e pela Cris Correa, da Editora C4, com arte gráfica encabeçada por estrelas do segmento como José Renato Maia e Richard Kovàcs, autores do mood, além dos diretores de arte in loco conosco: Chris Toledo e Anderson Ballet, escoltados pela trupe de designers Daniel Mangione, Priscila Novo, Murilo Milanese e Renato Freddi. Timão phodão – se imprimíssemos os currículos dessa galera, daria para revestir com papel quilômetros e mais quilômetros da Bandeirantes, da Anhanguera e das BRs que separam SP de Brasília. Modo orgulho on (e modéstia às favas): nenhuma outra redação de revista hoje em dia tem entourage tão gabaritada. Ou tem?
Eis que, no meio dos trabalhos, um amigo dispara um direct no Instagram indicando o trabalho de uma maquiadora que, segundo ele, “não tinha qualquer expressividade”, mas que jurava “ser a minha cara”. Ele tinha razão: apesar do déjà vu, pirei no projeto por envolver um ícone modernista brasileiro que é da minha adoração. Gostei tanto que repostei, cheio de boa vontade. Carrego essa volúpia espontânea de publicar gente jovem, abrir alas para o novo, por menos ibope que isso dê (é muito mais fácil apostar em artistas consagrados, representados por galerias respeitadas e mais bem estruturadas). Mas vi que aquela série tinha sim um borogodó. Daí acionei Ana Paula de Assis, jornalista amadurecida, empoderada, cultíssima, colaboradora de praticamente todas as minhas encarnações editoriais, para encabeçar a pauta. O que não imaginei é que estaria jogando uma das profissionais mais sérias e gabaritadas que conheço nas mãos de uma moça tão desrespeitosa quanto desconhecida. Com a palavra, Ana Paula: “Fiz o convite e, embora blasé – o que de início atribuímos a uma certa inabilidade com a imprensa –
ela topou. Poderia ter declinado, mas se comprometeu. Bastaram algumas trocas de e-mail e um pedido de alteração na especificação dos arquivos para o caldo entornar. Enquanto se fala em ‘coitadismo’ das minorias, senti minha pele, mais uma vez, avassalada pelas palavras imperativas de uma menina mimada e privilegiada, de quem ouvi que sou uma profissional despreparada e uma pessoa desequilibrada, além da insinuação de que estava com interesses escusos no material (ela estava com medo de roubarmos as imagens dela, imprimir e vender, vê se pode!). Não queria trazer um problema para a Redação e, pleiteando uma solução, entubei os desaforos. Mas a agressividade em suas palavras me fez chorar – de nervoso, não de autopiedade”, desabafa a calejada editora que comandou redações importantes. “Isso acontece o tempo todo em nossa área, principalmente com uma editora negra. O que esperar de uma ‘artista’ criada na capital do poder, que trocou o Brasil por Nova York há tempos e enxerga sua arte como um mero objeto comercial? Uma pessoa que só conversa por WhatsApp, com metade das palavras em suas frases escritas in English? Quando me desculpei cordialmente por eventuais equívocos na comunicação, ela se sentiu no direito de tripudiar. Gente assim cresce habituada à pseudo meritocracia construída sobre seus moldes brancos e europeus – moldes que não me cabem, visto que minha origem está na mãe África, de onde meus antepassados foram arrancados à força (por gente branca e privilegiada) para servir na escravidão – isso até bem pouco tempo atrás”, completa.
De certa forma, assim como a barreira de silêncio entre Gay Talese e Frank Sinatra jamais invalidou seu relato extraordinário – eleito no século 21 como um dos melhores textos já publicados na história –, o fato de a maquiadora parecer inacessível/isolada/intratável diz mais sobre quem ela pretende ser do que quem realmente ela é. Até então Ana Paula me poupara dos detalhes sórdidos, mas pediu para que outra pessoa tocasse a pauta – senão, teria desistido da matéria imediatamente e preservado a integridade da equipe, óbvio. Ingenuamente, queríamos apresentar outro recorte sobre essa arte que segue banalizada em reality shows caricatos como “Peles em Guerra” (“Skin Wars”, original dos EUA). Àquela altura, a “prima-dona” já havia até pedido para que eu apagasse o repost do meu Instagram por “não concordar com o recorte da imagem”. Penso em desistir da matéria, mas um dos nossos diretores de arte insiste em dizer que o flow da revista funciona melhor com ela. Neste ínterim, um assessor de imprensa mais do que camarada, dos bons, veio dizer que seu cliente, representante da “artista”, estava melindrado (!). Topo conversar com o cara. Lúcido, um lord, elogia meu trabalho e se declara fã da qualidade do que fazemos. Se ofereceu para intermediar, reconheceu que a tal artista é “difícil” e me desculpei pelo fato de, ainda que involuntariamente, minha equipe ter passado por cima dele e ido direto ao ponto. Ele volta a dizer que sua representada realmente é difícil e alega ter tido inúmeros problemas por conta de seu gênio do cão (neste caso, o gênio se refere à personalidade, não à genialidade, claro). Acredito que estou em boas mãos e vejo que o cara-carente só precisava mesmo era fazer xixi na pauta tal e qual um leão demarca seu território na savana. Mas Sartre estava certo: o inferno são os outros. Nossa rotina passou a pegar fogo diariamente com as trocas de mensagens inflamadas no eixo artista-galerista-revista. Acionamos nossos melhores para ir ao front gerenciar a crise: Mayra Ometto – über produtora que tem até um Oscar (maior prêmio da indústria internacional do cinema) no currículo (pelo documentário “Olhando para as Estrelas”). A gente é assim mesmo: em nome de um conteúdo que nos interessa, enfrentamos os 12 trabalhos de Hércules. Mas, desta vez, abriríamos a caixa de Pandora. Entrevista pronta, após o tal pedido de ajuste nas medidas das imagens que seriam publicadas – fato banal desde que Gutenberg imprimiu as primeiras folhas daquilo que seria mais tarde a imprensa contemporânea –, a artista se fez presente e anunciou que estaria ausente. “It’s a red flag”, escreveu ela em uma de suas mensagens. No inglês – idioma nativo dos norte-americanos e não dos brasileiros – a expressão significa: “alerta de perigo” ou “problema iminente”. Não quer dizer “cancelado”, embora tenha sido usado nesse contexto. Disse meia dúzia de impropérios para a Mayra, que também chorou de desgosto e aí sim eu dei um “qual é” no galerista e sinalizei que tomaria providências. Como não poderia esperar muita coisa de uma “maison” com nome de complexo laxante, é claro que o finérrimo senhor jogou os excrementos todos no ventilador e encaminhou o conteúdo privado da minha conversa com ele para a maquiadora mimada – que tratou de me mandar um áudio de intermináveis seis minutos, metade se autoafirmando, outra metade me ensinando a trabalhar. Zzzzzzzzz. Respondi que eu teria meu direito de imprensa e ela, o de resposta. “Karma is a bitch”, sentenciou, como quem roga uma praga. No final das contas, recorremos ao original Liu Bolin para preencher a lacuna sem medos e arremedos. Picasso canetou que os bons artistas copiam, mas só os grandes roubam. Liu Bolin é peixe grande que se apropria por completo de uma técnica que muita gente por aí já usou e a converte numa obra autoral, própria, inconfundível, louvável. A maquiadora cuja máscara caiu? Ela só é boazinha. Little good.