As deusas devem estar loucas

E

aqui quase jazz um jornalista metido a agitador cultural. Assinar a (re)estreia de um dos palcos mais formidáveis de que se tem notícia foi um desafio que quase me custou um AVC – tudo culpa do meu id megalomaníaco, que, diante de verbas parcas, sempre pondera o imponderável e me faz atravessar madrugas malhando o córtex e flexionando os joelhos em clamor pelo milagre da multiplicação das carpas (e dos botos-cor-de-rosa). Tem dado certo – mas a minha fatura com o Todo-Poderoso tá maior do que a dívida do JP Morgan. Desta vez a epopeia começou com um convite do ex-presidente do Memorial da América Latina, vossa excelência Irineu Ferraz (homem público visionário, corajoso e absolutamente engajado com o Governo do Estado de São Paulo, que esteve à frente da Fundação entre 2016-2017), para assumir, em outubro daquele ano, sua diretoria cultural. Irineu, mais doido do que eu (só pra fazer rima infame), deve ter se empolgado com o meu modus operandi tsunâmico de produzir eventos e ensaios pouco ortodoxos – tipo aquele em que invadi o seu quintal para pendurar uma modelo com 70 metros de panos esvoaçantes nas empenas cegas do Niemeyer, desde o Salão de Atos até o Prédio da Administração do Memo; ou ainda naquela primeira ocasião em que, em parceria com a Deca (que pagou a conta), fizemos showzão high-tech do Ney Matogrosso no Foyer do Auditório, pasme, mais de um ano antes da reforma, no meio dos escombros. Daí o cara achou que eu tinha algum estofo para ajudá-lo na missão de rejuvenescer a Fundação e devolver o auditório à cidade com pompa, circunstância e alguma pirotecnia (se bem que, desta vez, era melhor deixar o fogo bem longe disso, por razões óbvias). Fiz as contas do horário, rearquitetei radicalmente minha rotina para fazer caber nela o expediente cartesiano do funcionalismo público e mergulhei de cabeça, só pra variar um pouquinho. Desafio aceito, um dos primeiros trabalhos deste Hércules com mais tecido adiposo do que músculos que vos escreve seria pensar no espetáculo de reinauguração do Simón Bolívar, quatro anos após o trágico incêndio que o tirou do ar. Parênteses rewind: construído há 28 outonos na órbita do largo da Banana, onde os trabalhadores negros se reuniam no início do século 20 jogando tiririca (ancestral da capoeira) à espera do trem, e onde fundariam o primeiro grupo carnavalesco (batizado em 1914 de Cordão Camisa Verde), o auditório que leva o nome do Libertador das Américas se ergue sobre bem-assombrado solo sagrado (reza a lenda que é impossível caminhar por ali sem estalar os dedos e dar uma reboladinha de leve) – um poltergeist do bem com todo o borogodó dos primórdios das marchinhas. O layout quase se serve da estética grega de arena tão característica da gênese das artes dramáticas nas civilizações, em que as plateias se agrupavam em meia lua ao redor do palco. Quase. Neste caso, Niemeyer cravou o proscênio no epicentro de duas arquibancadas em declive, para operar como uma espécie de palanque em 360 graus, só que sem audiência nas laterais. Numa delas, está a tapeçaria de Tomie Ohtake, totalmente reconstruída pela Punto e Filo, pleiteando seu crédito no “Guiness Book” como a maior do mundo. Mas, independentemente de recordes algarítmicos, na minha mais do que modesta opinião, trata-se da sala de concertos mais phodástica do mapa, que voltou turbinada com rebatedores de última geração para uma performance acústica ainda melhor do que aquela experimentada por kaiseres como Tom Jobim, Edu Lobo, Milton Nascimento, Mercedes Sosa e outras lendas que passaram por lá. Exatamente por isso, em vez de pinçar um espetáculo de carreira de qualquer artista incensado (e dormir sossegado sem me preocupar com os mandos e desmandos do fabuloso universo do show business), resolvi inventar, rascunhar, desenhar, produzir, roteirizar e dirigir um concerto sob medida para a estreia, com todas as dores e delícias compreendidas no jumbo.

 

Óbvio que pensei em Elza Soares logo de cara. A imagem que produzimos com ela para um trabalho recente era tão forte que rodara o mundo, replicada à exaustão desde sites gringos até tatuagem na perna de um fã da mulher. Antes de  ter definido o formato final do concerto, havia lido um artigo sobre ela no jornal inglês “The Economist”, batizado de “The Metamorphosis of Elza Soares”, e foi o golpe de misericórdia de que precisava para convencer o Conselho do Memorial. Como nenhum outro artista, Elza fazia match com o auditório por sua vibe fênix e seu elã de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima – um storytelling e tanto para mim, para eles, para o público e para a imprensa (que se refestelou no tema e fez a clipagem do espetáculo bater no teto). Claro que eu não me contentaria apenas e tão somente com mais um show da Elza (que anda superlotando até o Central Park, lá em Nova York) e, junto com o Irineu e a PG Music, decidimos montar uma homenagem com divas brasileiras sui generis que se serviram de seu legado, direta ou indiretamente, em diferentes vertentes, além de levantar discursos antirracistas, antigenerofobias, antiparasitas, antimonotonia. Deu trabalho!

Não que eu esteja de mimimi: poderia ter sido muito pior. Luciano Pavarotti só abria a boca se o contratante reservasse duas suítes, uma para si próprio e outra para recriar sua cozinha – ele trazia tudo no avião, até o fogão e o chef italiano! Prince, além de 200 toalhas brancas, exigia um enfermeiro que lhe aplicasse vitamina B12 antes de subir ao palco. No Rock in Rio de 1991, o vocalista do Guns N’Roses, Axl Rose, aterrorizou a produção, que teve de providenciar – e manter aquecidos – 28 pratos de fettuccine à bolonhesa. Quando o show terminou e a banda deixou o camarim em estado de miséria, a única coisa intacta por ali era a ceia: nem um único fio de macarrão havia sido tocado. Em turnê pela Índia, Justin Bieber solicitou dez sedans de luxo e dois ônibus da marca Volvo, além de um Rolls-Royce, um jatinho privativo, um helicóptero para levá-lo aos estádios, massagista de plantão, entre outros amenities. 

Então, era só o início do meu percurso pelo vale da sombra da morte, em que 10 mil cantoras caíram à minha esquerda e 100 mil à minha direita: fazer render os recursos limitadíssimos que mal cobririam a logística dos artistas (que dirá os cachês), escalar e negociar cada musa e cada canção do repertório, lidar com a saída de alguns nomes já confirmados do casting, coordenar uma trupe de mais de 200 pessoas entre técnicos e artistas, apaziguar conflitos entre egos, brigar pelos melhores som e luz, batalhar pelos arranjos, se fazer invisível diante de tantas vaidades, colocar quase 2 mil pessoas lá dentro às vésperas do Natal (quando todas as agendas estão colapsadas), prestigiar as duas plateias sem preterir nenhum espectador, improvisar uma megainfra tipo oásis temporário para os camarins ainda em obras, levantar bandeiras de diversidade, empoderamento, respeito e tolerância sem fazer motins que melindrassem as autoridades, exibir todo o potencial arquitetônico e ergonômico do espaço, montar seis lounges deslumbrantes no Foyer, publicar um programa cool com cara de revista, botar o espetáculo de pé e armar o circo completo para a transmissão na tevê aberta, já que tudo seria gravado para exibição integral na TV Cultura. Apenas.

E cada gesto tinha que ter a sua razão de ser. Inventei que Baby do Brasil, a mais espevitada do bando, chegaria causando pela plateia, por exemplo, porque isso simbolizaria o discurso de comunhão que Oscar Niemeyer traçou para aquele espaço. Ela topou na hora – a equipe técnica quase me degolou. Propus números a capella para valorizar a acústica monumental do Simón Bolívar e lá vieram mais cascas de banana pela passarela. E a beleza pura de Vera Fischer (minha cover girl) também foi um charme extra, com direito a muitos memes com meu mea-culpa. Explico: uma boa dose de alegria e outra de naturalidade são fundamentais – e estranho mesmo seria ter algo aritmético, milimetricamente programadinho e linear dentro de um elenco tão plural, com tantas narrativas hasteadas e tantas verdades a serem ditas. Nenhuma estrela da constelação bombástica dessa reinauguração estava ali pra cumprir tabela, já que a ideia era reunir mulheres fortes, com biografias densas, intensas e grandes cases de superação. Reinventada e carismática, contrariando a fama de prima-dona intratável, Vera, corajosa que é, não perdeu o rebolado quando o canhão de luz cegou sua percepção (se orientar diante de duas plateias não é mole, não, meu irmão) e divertiu todo mundo com seu jeitão leve e desencanado (nos bastidores, então, ela arrancou muito mais gargalhadas, acredite). Sua figura estelar – e idolatrada pela audiência – transborda energia e suplanta qualquer intercorrência. Viva Vera, no final das contas, a farofa picante daquela feijoada curtida em carnes nobríssimas do mercado musical.

Àquela altura, achei que passaria desta para uma melhor antes de a ribalta acender. Entre zilhões de pequenas, médias e grandes turbulências, a iluminação técnica necessária para uma boa captação de imagens da TV Cultura sabotava todo o meu projeto luminotécnico. A divisão dos camarins demandara uma diplomacia maior que a do Itamaraty – e da Arca de Noé, em que leoas não podiam ficar enjauladas com tigresas e as dentadas sobrariam, invariavelmente, para mim. Uma estrela saíra de fininho do ensaio geral, outra se digladiara com a orquestra após passar o mesmíssimo acorde durante quase três horas. Uma diva pedira para abaixar o volume do microfone da outra, com medo de sua voz ser abafada – essa, por sua vez, não deixou barato e subiu ainda mais o tom. Aquela outra não cantava do lado dessa, nem por decreto. Uma terceira ameaçou invadir um número que não era o seu.

Enfim, as deusas deviam estar loucas e eu, mais ainda, já que, não bastasse meu quinhão de dramas, ainda enfiei o ensaio fotográfico que ilustra estas páginas no meio do ringue. O sofrimento não foi em vão. No dia do Juízo Final (ou melhor, do show), tão profissionais quanto brilhantes, todas as sumidades se deram as mãos, entregaram o seu melhor e arrebataram o coração de Elza – e os nossos também.

Do palco, observávamos as pessoas em transe na plateia – metade da turma vertendo soro fisiológico das vistas e a outra metade se abanando (claro que, entre os abacaxis que tivemos que descascar, rolou uma pane no sistema de ar-condicionado, novinho em folha e testado à exaustão, com aquele calor senegalês que só dezembro traz para você). Ainda estava assimilando tudo isso (e improvisando um leque com o programa impresso) quando uma verborrágica Sandra de Sá me agarrou em lágrimas pra agradecer. Para muito além do talento de todas que trouxeram a plateia abaixo, Liniker, também aos prantos com aquele que considerou o ponto alto de sua carreira, não conseguia pronunciar uma palavra em sua saída. Paula Lima, gerenciadora de crise das boas que proveu meu maná em vários momentos de apuros no decorrer dos ensaios, foi uma espécie de guia da Terra Prometida. A angelical Vânia Bastos e seu positivismo quase materno, o astral esfuziante de Raquel e Assucena, o amor e o poder de Rosana (alguém conseguiria imaginar divindades tão antagônicas no mesmo balaio?). E a presença de sua entidade mais do que sagrada Elza, a avis rara desse Paraíso.

Sem temer qualquer clichê, vale cunhar a sentença final acerca do trabalho que quase me fez ter um infarto do miocárdio: o Auditório Simón Bolívar ressurgiu, literalmente, das cinzas, na noite mais inesquecível da minha vida. O resto é história. E histórico!

Elza Soares:
A lenda viva

Minha experiência com a maior lenda viva da MPB transcende o espetáculo com o Memorial. Já entrevistei-a algumas vezes nos últimos anos e o trabalho longo e complexo para a capa de uma revista nos aproximou ainda mais. Pedro Loureiro, que, ao lado do Juliano Almeida, responde pelo (re)boom da carreira da diva há pelo menos três anos, se tornou um amigo com quem André Rodrigues e eu temos feito produtivas parcerias – a próxima delas, aliás, me faz inflar mais do que um baiacu: fui convidado para dirigir o novo DVD desta divindade a convite da própria Elza. Mas o papo aqui era homenagear a musa sem cair na vala do lugar comum, com um espetáculo que reunisse cantoras de diferentes gêneros e estilos que casassem com ela. Pitty, por exemplo, que, no dueto com Elza, liderou os downloads do Spotify em 2017, não veio por pouco, assim como Alcione, Elba Ramalho e Maria Rita – todas se mobilizaram mas, por conta de compromissos pré-bookados (em dezembro, as agendas artísticas costumam estar mais tumultuadas do que nunca), não conseguiram se fazer presentes (e eu não consegui alterar o calendário de inauguração, já que envolvia a entrega pontual de uma obra pública). E como não podia colocar qualquer cantora só pra cumprir tabela, trabalhamos duro para cooptar um elenco contemporâneo de tirar o fôlego em sintonia com Elza, sem forçar nenhuma barra. Baby do Brasil representa os scat singings, improvisações onomatopéicas que Elza aprendeu carregando latas d’água na cabeça em sua infância miserável (e que Baby, menina rica, aprenderia ouvindo Elza no rádio). Sandra de Sá veio pelo carioquês carregado com orgulho, pela emissão avassaladora de sua voz e pela militância racial. Paula Lima, tanto pela ginga samba-soul, quanto pelo sofisticado coté diva. Rosana faz match com Elza tanto pelo apelo pop quanto pelo seu lado B: um estilo jazzístico de improvisar com forte influência norte-americana, à moda de Aretha Franklin. Vânia Bastos, pelo apego ao samba de raiz e interpretação dos grandes mestres do passado. Liniker e As Bahias e a Cozinha Mineira, pela vanguarda e pela bandeira da diversidade, outro tema constante no canto-protesto de Dona Soares. Operação de guerra para colocar Elza no palco. Com dificuldades de locomoção, vencer os degraus da escadaria de acesso é sempre uma batalha – Elza, mulher que não se vergou jamais diante de nada, não se deixa ser vista em cadeiras de rodas. Sai de cena o piano da Rosana, entra o praticável com o trono da rainha. E após as merecidas homenagens em uma hora de concerto, subiu ao palco entoando que a carne mais barata do mercado é a carne negra. Quando a orquestra deu seu último acorde, passou uma descompostura pública no maestro da Jazz Sinfônica Brasil porque sentiu a ausência de músicos negros. Seguiu cantando “Mulher do Fim do Mundo” e dividiu o palco com Baby em seu clássico “Malandro”. Depois, como grande “rainha da porra toda”, recebeu suas súditas em “Mas, Que Nada”. Sai da minha frente que eu quero passar, pois o samba está animado e o que eu quero é sambar. Sambamos. E choramos.

As Bahias e a Cozinha Mineira, Assucena e Raquel:
Les enfants terribles

Assim que desenhei o espetáculo “Jazz & Divas”, tracei uma única certeza: deveria honrar os ideais mais nobres de Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, os gênios que, em dobradinha, projetaram conceito + casca do Auditório do Memorial da América Latina – feito para servir de palco à união dos povos. Já andava de olho numa banda chamada As Bahias e a Cozinha Mineira, cujas vocalistas são duas transsexuais historiadoras formadas pela Universidade de São Paulo. Fato. Assucena Assucena e Raquel Virgínia são mulheres T lindas, cultas, inteligentes, jovens, engajadas, superpoderosas. Escaladas para “Espumas ao Vento”, seu canto de liberdade foi afinado e afiado. Elas atacaram os vocais em dose dupla e rodopiaram uma em torno da outra feito estrelas que dançam no laço gravitacional, celebrando o princípio da complementaridade – com as elétricas Bahias em corrente contínua por toda a vasta extensão do palco, a dinâmica espacial única do Auditório do Memorial foi grandiosamente revelada ao público, que se viu tomado de assalto pela apresentação extasiante. Aqui, Niemeyer debruçou o palco no centro de duas arquibancadas em declive, para operar como espécie de palanque panorâmico, porém sem audiência nas extremidades – uma delas, por exemplo, é ocupada pela tapeçaria gigante de Tomie Ohtake. Assucena + Raquel entenderam isso de partida e orquestraram uma das performances mais energizantes da noite. “Quem são esses homens vestidos de mulher?”, me perguntou um desavisado nos bastidores. Respondi: “Abra bem os olhos: as Bahias são o futuro”. Mais uma vez, Assucena e Raquel fizeram história. A música já disse, meninas: “De uma coisa fique certa, amor… A porta vai estar sempre aberta, amor”. Viva a diversidade!

Baby do Brasil:
A Cor Púrpura

Um dos nomes mais respeitados da MPB, seja em carreira solo, seja na gênese dos legendários Novos Baianos, Baby foi escolhida para o número de abertura justamente por sua hiperatividade e conexão com o público – que viria abaixo com a performance mais colorida da noite. “A menina que não quer crescer”, como pontuou a irreverente cerimonialista Vera Fischer, foi quem atualizou “Brasileirinho” no álbum dos anos 1990 “Ora Pro Nobis”, choro composto por Waldir Azevedo nos anos 1950, para todo o sempre em sua versão über upbeat explosão atômica, totalmente fora da curva – sem derrapar uma nota sequer. Meu objetivo era que o público enxergasse todo o Auditório do Memorial em sua monumentalidade, agora restaurada e 100% segura. Inspirado em concertos clássicos da antologia da black music em que Diana Ross e Patti Labelle surgem da plateia feito aparições, chamei Baby num canto e fiz a proposta indecente: “Você topa abrir o show da plateia?”. Ela olhou para um lado do auditório, depois para o outro. “Escolhe qual você prefere. Posso testar agora?”. E Baby desceu, degrau por degrau ao meu lado, olho no olho. “Daí você acha que eu paro aqui e brinco um pouco com as pessoas?”, me perguntou quando chegou a um platô entre as poltronas, que funcionou para essa mulher-furacão como palco. “Como assim, Baby? Faça o que você quiser, a casa é sua.” E ela sambou, girou e saracoteou feito o pirilampo que é. Nas paralelas, um dia antes do show, tagarelamos até as duas da madruga sobre a Bíblia e que-tais, ela me ensinou receitas que levam salsicha vegetal e contornamos pequenos entreveros – seu espírito de liderança natural acaba gerando alguns melindres, mas ela tem toda a ginga (e generosidade) para contorná-los antes que a música acabe. Após uma das apresentações mais emocionantes do concerto (o dueto com Elza Soares em “Malandro”), Baby abdicou do número final para não ofuscar ninguém e voltou à cena apenas no último ato, para colocar ordem na bagunça com seu acessório de cabeça à la Janis Joplin e toneladas de paetês arroxeados em seu incrível look pós-Tropicália. A cor púrpura de suas madeixas (por acaso, o tom oficial da Pantone em 2018, rotulado como Ultra Violet) tingiu de alegria, fervor e bênçãos a reabertura desta casa tão simbólica, num espetáculo em homenagem a uma mulher idem, que saiu do planeta Fome e vai cantar até o fim do mundo. Como Baby pregou ao final de seu primeiro ato: Glória a Deus, aleluia!

Sandra de Sá:
Mulata assanhada que passa com graça fazendo pirraça

Desculpem o baixo calão, mas Sandra de Sá é phoda com PH maiúsculo. Nome mais estelar da chamada Música Preta Brasileira, detentora de tantos primeiros lugares nas paradas de sucesso que dariam para preencher três edições da Billboard, deixou todo mundo de cabelos em pé por não querer passar o som, por não bater o tom e por não ensaiar com todas as divas juntas (e não, ela não tinha nenhum desafeto no elenco – muito ao contrário, era toda boa praça). Àquela altura, todos queriam me escalpelar. “Cadê a Sandra, Allex?” E eu: “Gente, vai por mim. Ela vai arrebentar. Já a contratei antes e o show foi lindo, sem nenhum pé na jaca” – referindo-me à época que dirigia outra revista e intermediara as negociações. Sob olhares desconfiados, eis que ela surge no ensaio atrasada, simpática, animada e vibrante (parece trazer tatuado na testa o “Bye, Bye Tristeza” que se consolidou como um dos seus principais hits ultrapop no final dos anos 1980). Explico-lhe o auditório e a oriento a se apresentar para os dois lados, sem desprestigiar nenhuma das plateias. “Quero saber qual dos lados pagou mais caro, meu irmão.” Arranca gargalhadas e quebra as minhas pernas. E pede ao maestro para ouvir o arranjo silenciosa e humildemente, sem colocar a voz. Observa a orquestra. E pede para repetir. Entra impecavelmente com seu vozeirão de trovão e faz seu ensaio uma única vez. Sandra nasceu pronta. Corta para o dia do show e sua performance acústica de “Beija-me” a capella e para a festa que fez com o público em “Mulata Assanhada”, evocando Elza (e os aplausos entusiasmadíssimos da claque). Levantou geral. Assistiu ao restante do espetáculo todo quietinha da escadaria de acesso ao palco, do meu lado, chorando e eventualmente lembrando um ou outro causo de suas aventuras com Elza e Cazuza, nostálgica, diante de um sujeito absolutamente maravilhado. Não é difícil entender sua empatia com as massas.

Rosana:
Tão perto das lendas

Pedi para que, após “Volta por Cima”, seu número com a Jazz Sinfônica Brasil, ela tocasse piano para exibir seu coté virtuose que, assim como a voz estratosférica, sempre a destacou. Mas não queria essa mulher exuberante (de quem sou fã de carteirinha e com quem tive o privilégio de trabalhar outras vezes – e para quem, neste exato momento, estou dirigindo o novo videoclipe) “enterrada” no meio da orquestra, e sim como um ponto de exclamação no espetáculo. Acionamos uma velha parceira do Memorial, a Universidade Belas Artes, e Patricia Cardim emprestou a raridade da foto, um piano branco (na verdade, baunilha), anos 1960, para uma das performances mais tocantes da noite. “O sentimento dela me atravessou feito uma lança”, me dissera o André Rodrigues no ensaio, com lágrimas nos olhos. Arrepiei com o comentário e fui puxar no HD (você pode jogar aí no Google para confirmar que ela é muito mais do que os 20 temas de novelas e os inúmeros troféus de melhor cantora popular que emplacou ao longo da carreira): Caetano Veloso escreveu em “Verdade Tropical” que ela tinha tudo pra ser uma nova Elis Regina; Tim Maia dizia que ela é simplesmente a maior do Brasil; Roberto Carlos e até Gal Costa concordaram com ele; outro Roberto, o Menescal, documentou que a emissão de voz dessa mulher seria suficiente para colocar Barbra Streisand no chinelo. E, ao lado do André, testemunhei, no ensaio técnico, toda a equipe de produção se emocionar ao vê-la se apropriar feito um blues de Bessie Smith do clássico de Chico Buarque, que se tornou um hino na voz de Elza Soares. Com arranjo próprio assinado – e dedilhado – por ela, Rosana se apropriou com destreza e alma da letra que fala sobre uma mulher muito simples do morro que cria um mundo imaginário para não aceitar o fato de que o filho é marginal – e que acaba assassinado. Uma das peças mais tristes do cancioneiro popular brasileiro que traduz um dos momentos mais antológicos do legado de Elza, tão jazzística nos improvisos quanto Rosana. É mais do que musicalidade ou potência, mais do que afinação, mais do que um timbre deslumbrante. Algumas intérpretes têm esse x-factor. Rosana e Elza, têm. As 1,8 mil pessoas que lotaram a reestreia do Auditório do Memorial da América Latina também se sentiram atravessadas por uma lança.

Paula Lima:
Velvet Shine

Sua voz grave, potente e aveludada como chocolate quente (não por acaso, o nome do programa que comanda na Rádio Eldorado) também é uma das minhas favoritas – se você é iniciado na cultura black, emparelhe-a com divas norte-americanas como Anita Baker ou Gladys Knight e se atreva a dizer que Paula canta menos do que elas se for capaz. Parceira de outros carnavais (já a entrevistava antes mesmo de empunhar o diploma de jornalismo e pude colaborar com o cenário de um concerto seu no fabuloso Auditório do Ibirapuera, outro petardo de Niemeyer), amiga amada, foi quase uma diretora assistente desse concerto, me ajudando até a reconfigurar os PAs (caixas acústicas de retorno) do palco. E imagine o drama: cada artista poderia cantar apenas uma canção por questões de logística (na busca da perfeição, os arranjos de uma orquestra demandam um bom tempo de criação e outro maior ainda de ensaio – e nós estávamos correndo contra ele, o tempo, full time. Sem falar no dinheiro: arranjo custa quase tão caro quanto instrumentos musicais!). A solução foi recorrer aos recursos individuais de cada estrela – um número com Rosana ao piano, outro com Sandra de Sá a capella e por aí vai. Paula, que além de ser uma intérprete fenomenal de “forno e fogão”, também manja muito de produção executiva: sugeriu um número extra com a apocalíptica “Ave Maria no Morro” aos 45 minutos do segundo tempo e foi lá domar a fera da orquestra, vossa excelência, o maestro. Pleiteamos um acompanhamento de violino, João Maurício conseguiu uma viola (o bambambã Newton Carneiro e, de quebra, uma incidência do piano de Marcelo Ghelfi – tá?). O resto, todo mundo viu: um dos momentos mais apoteóticos do show, na sequência da já deslumbrante “Fadas”, do masterpiece Luiz Melodia. Custou apenas um ensaio extra rápido – e quase um outro AVC deste gorducho que vos escreve. Mas valeu cada minuto de tensão. Queria uma Paula Lima cantando para mim todos os dias – e outra como assistente de direção de cada produção que encararia dali pra frente.

Liniker:
Uma força da natureza que não força nenhuma barra

Busquei jovens cantoras que representassem em sua geração os valores por mim estabelecidos para o concerto “Jazz & Divas”: liberdade, diversidade, igualdade. Sem fazer mimimi, até porque nunca me travesti e essa não é a minha praia (muita atenção aqui, porque as pessoas sempre confundem tudo, o tempo todo e o preconceito começa na própria comunidade LGBTQ+). Mas, do ponto de vista da orientação, conheço pessoalmente as agruras de não me ver representado, e achei digno promover essa visibilidade. Foi contando essa história ao meu geniozinho de bolso André Rodrigues que ele disparou sua flecha certeira: “Conhece a @linikeroficial?” Claro que conhecia – já era apaixonado por sua voz e fã de uma fotografia sua que o Miro fez caracterizada de Diana Ross. “Ouve isso”, seguiu André, apertando o play de uma versão acústica de “Zero”, hit viral da neodiva. Dias depois, o intrépido Pedro Loureiro, um dos responsáveis pelo boom de Elza Soares, voltou a citar Liniker em uma de nossas conversas. Não tive dúvidas. Corta para sábado, 16/12: Liniker está prestes a tomar o palco do Simón Bolívar. André, com um dos seus tênis alados, olha para ela e diz: “Você tem um dom extraordinário, sabia?”. Ela sorri com a ternura dos seus então 22 anos de idade e retribui com um abraço e um “obrigado” em forma de sussurro, tímida até não poder mais. Na fogueira das vaidades que arde nos bastidores, dois anjos conversam, alheios a tantos egos. A diva entra no palco ovacionada pelo público e minha alma é lavada – travestis, transsexuais e transgêneros, gays, héteros, binários e não binários: estamos todos ali unidos. Liniker abre o vozeirão em “Flores Horizontais” e a nova acústica do auditório é levada às últimas consequências, mas responde à altura, convertendo o interior do espaço em uma caixa acústica titânica, onde reverbera a voz da igualdade. Ao final, dirige-se ao público, emocionada, e registra a importância daquele momento. Estou fora do corpo. Liniker desce as escadas cambaleando, arrebatada pela energia da noite e, ao chegar no final, dá de cara com o André. Em prantos, ele devolve o abraço de antes. Ouço alguém ao fundo: “Ela é a nova Maria Bethânia”. Não. Ela é a Liniker: primeira, única e, hoje sabemos, definitiva.

Orquestra Jazz Sinfônica Brasil

A Jazz Sinfônica tem suas raízes fincadas no Memorial da América Latina: foi no palco do Auditório Simón Bolívar que a orquestra estreou em 1980, sob a direção do maestro Cyro Pereira, um ano depois de criada pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo como resgate da tradição das antigas orquestras brasileiras de rádio e televisão. Regida pelo maestro João Maurício Galindo, com direção artística de Antonio Ribeiro, e formada por cerca de 90 músicos. A principal característica da Jazz Sinfônica são os criativos arranjos sinfônicos que conferem tratamento erudito à música popular universal – do jazz e da MPB a variados ritmos latinos. Com mais de duas décadas de atuação ininterrupta, já dividiu os palcos com Tom Jobim, Milton Nascimento, Gal Costa, Stanley Jordan, John Pizzarelli, Gonzalo Rubalcaba, Dee Dee Bridgewater e Paquito D’Rivera. Ribeiro, homem culto, alma de músico e espírito empreendedor, foi o meu grande “comparsa” nesse espetáculo. Aprovou o elenco de cara e batalhou cada um dos arranjos em tempo recorde. Ajudou a domar gênios indomáveis – às vezes é melhor lidar com divas do que com certos músicos – e administrar pequenos aborrecimentos aqui e acolá. Afinal, o show tinha que continuar.

Vânia Bastos: Primeira classe

Por falar em intérpretes afinadas e elegantes, uma das mais sofisticadas de que se tem notícias é Vânia Bastos, figura de proa no movimento Vanguarda Paulista. Claro que, a bordo de look haute couture cheio de transparências e um imenso colar de pérolas que daria para dar três voltas na lua e outra em Marte, essa imagem da diva chique que ela ostentou no dia do espetáculo ficou mais óbvia. Mas Vânia não é só fina estampa e voz de cristal – ah, não é mesmo. Escalei essa cantante cheia de técnica e emoção – uma das minhas preferidas, a quem acompanho da primeira fila há muitos anos – para integrar o elenco em homenagem a Elza tanto pelo apego aos grandes compositores do passado e ao samba de raiz, quanto para potencializar o painel da diversidade de tribos e gêneros que ali se estabeleceu – sem falar que Vânia foi a primeiríssima cantora a se apresentar no Memorial, quase trinta anos atrás, e sua presença na reinauguração era uma das mais acertadas para quem, como eu, queria contar uma história contundente em cada peça da camerata. Seu mais recente álbum, o premiadíssimo “Concerto para Pixinguinha”, foi considerado um dos melhores de 2016 e levou a artista a turnês gringas que passaram pela Europa e pelo Japão. Pelos bastidores, serena e apaziguadora enquanto o mundo desabava, com seus olhões expressivos e sorriso de 800 dentes em cada arcada, foi a estrela que mais tranquilizou meus produtores nos momentos de pânico – acontece de um tudo no backstage, sempre, de problemas técnicos a chiliques de staff, convidados, figurinos, problemas de transmissão, etc. Ela estava lá, classuda de verdade – gente fina é outra coisa messsssssmo, e não faz blasé. Fez seu trabalho com precisão e emoção em “Se Acaso Você Chegasse”. O único senão: faltou o bis e todo mundo queria mais Vânia. Eu, inclusive.