É
preciso boa dose de disposição (algo que brota na gente feito chuchu na cerca) e outra de tempo (não pergunte como conseguimos) para atracar em Itinga (“água branca”, em tupi), pequeno município ao noroeste das Minas Gerais, deixando pra trás a fronteira com a Bahia e cruzando algumas pontes de madeira empanadas por terra acre cuja chuva parece não lamber o chão desde que rodaram “Grande Sertão Veredas’”, de Guimarães Rosa, perto dali, no comecinho dos anos 1960. Quando um carro de boi ou automóvel singra o solo que, na era Cambriana (pré-pré-pré-histórica), suportava florestas e lagoas, a superfície craquelada desmancha feito cookies levantando uma poeira vermelha que faz a gente se sentir mandioca com urucum derretendo na panela de pressão. Aliás, nem mesmo ela, a mandioca, um dos principais subsídios da cultura indígena, teve chance por ali. Apesar da secura que castiga o solo, a agropecuária é uma das principais atividades econômicas da região do Vale do Jequitinhonha, “perdendo” somente, e com certa obviedade, para o ramo da mineração e o setor industrial – em que cerca de 179 mil pessoas vivem e trabalham no campo. O clima semiárido sopra quente em montanhas e planícies carecas onde o gado magro pasta deprimido nos períodos em que a precipitação é quase nula, entre abril e setembro – no sertão mineiro de extremos, que tem vegetação de Mata Atlântica e trechos de cerrado e caatinga, a temperatura passa dos 35oC durante metade do ano. Na outra metade, até chove, mas a conta-gotas. Nada que você já não tenha visto nas telas pinceladas pelos artistas naïf, só que bem menos pigmentadas.
O caminho que escolhemos para armar um set tão afastado foi pelo sul da Bahia. Com uma equipe de 20 pessoas entre stylists, fotógrafos, modelos e videomakers, desembarcamos no aeroporto de Porto Seguro, onde pegaríamos um jatinho fretado a um preço que já dava para ter desconfiado. Ao deparar com o teco-teco, parte da tripulação decornáutica amarelou e cambiamos o traslado por uma van. Cerca de 400 quilômetros e sete horas depois, atravessamos Estanhado, Curiango, Almenara, Guaranilândia (os índios botocudos, também conhecidos como aimorés, foram os originais naqueles cantões e, mais tarde, em meados do século 16, perseguidos e dominados por bandeirantes vindos na expedição conhecida como Bruzza-Navarro em busca de ouro e pedras preciosas), Capoeira Grande, Salto da Divisa e, pasmem, uma cidade chamada Pasmado. Praticamente acampamos num simpático hotelzinho em Itaobim, região do Jequitinhonha que entalha e molda um dos mais belos e autênticos artesanatos brasileiros, especialmente trabalhos de cerâmica, cestarias, tecelagem, couro, bordados e esculturas de madeira – um dos principais representantes deste último é o itinguense Ulisses Mendes. Tudo lindo e barato (voltaríamos com excesso de bagagem, inclusive). O rio Jequitinhonha serpenteia boa parte da estrada sinuosa e acidentada que faz o carro se comportar com a estabilidade de uma geringonça vintage do Playcenter (tipo o La Bamba, o Evolution, a Enterprise e outras “centrífugas” de bater gente e atacar a labirintite só de olhar). Numa dessas paradas para tirar a água do joelho no meio do nada, alguém aponta o esqueleto de uma cabeça de boi que parece ter sido colocada ali só pra gente lembrar que estamos bem longe de casa – e da vida boa que levamos e do quanto devemos rever nossas reclamações cotidianas. Choques de realidade – em alta voltagem – chacoalham o peito feito desfibrilador. Embora assumidamente (e nada orgulhosamente) urbano de dentro pra fora e de fora pra dentro, tenho lá alguma intimidade com a rusticidade do interior paulista e já tive a fortuna de pingar em vários estados desses Brasis imensos e tão antagônicos entre si, na prosa e no verso. Mas, exceto pelos points gourmetizados da indústria do turismo que faz toda sorte de cousas espartanas subirem no mais alto degrau do luxo, jamais havia penetrado essas artérias mais densas onde a beleza de um horizonte cru vem pontuada pela tristeza de frames como o de um homem simples e seu filho suando a bordo de um jegue sarnento, puxando uma carga ensacada de sabe-Deus-o-quê tingida pelo matiz rubro do pó que arde nas vistas e quase derrete em barro com os 50oC em média que encaramos uma única vez – mas com o qual aqueles dois (e outros 23,9 milhões de brasileiros – cerca de 872 municípios enfrentam a falta de água, especialmente na região nordeste do País) convivem diariamente. Me lembro das “Vidas Secas” do Graciliano Ramos, o primeiro clássico que li na vida depois de praticamente me alfabetizar debruçado sobre “O Escaravelho do Diabo”, “A Ilha Perdida” e outras publicações da Coleção Vagalume (editora Ática, anos 1970). Aquela narrativa regionalista, considerada um marco do modernismo literário, ilustrada pelas pinceladas do Aldemir Martins e com certo espírito marxista contextualizando um panorama retirante que eu mal alcançava na época, mas que veria muitas outras vezes em filmes, documentários ou minisséries da Globo, estava descortinada diante dos nossos olhos.
E pode nos julgar. Sem hipocrisias, nosso trabalho, nesse contexto todo, soa deveras supérfluo, ainda mais considerando toda a cultura de consumo para poucos e bons que constitui a missão de quem nos contrata. Ainda assim, para quem enxerga a vida – e esta revista – quase como um filme, registrar a realidade dura com certa licença poética embalada por imagens oníricas é quase uma obrigação. E, por mais que, nesses tempos de chroma key, blockbusters inteiros sejam gravados dentro de um estúdio com fundo verde e certas tecnologias encurtem o caminho das pedras, em busca da imagem perfeita ainda somos movidos por uma sede orgânica que demanda aventura, doação e sacrifício (ostra feliz não faz pérola – afinal, a bolinha mais cara das profundezas do oceano é resultado de uma reação natural contra invasores externos que roubam sua concha na base da porrada. Para se defender, o molusco libera uma substância composta de material calcário e orgânico conhecida como madrepérola, que o protege do perigo). Neste caso, optamos por encarar o bicho de frente, já que se trata muito mais de hedonismo do que autoflagelo.
Da série “discrepâncias de um Brasil sem fronteiras”, traçamos um roteiro empírico sem limites (e com trocadilhos), em ensaio proposto para mostrar a nossa interpretação da Unlimited, brand de piscinas do grupo iGUi com conceito inovador que permite a fabricação de qualquer modelo seguindo formas lineares em PRFV (poliéster reforçado com fibra de vidro). Tudo no nosso livro de arte Decornautas (procure nas melhores livrarias). Na parada final, a pedreira Copacabana, de onde se extrai uma pedra homônima. Aqui vai outro mea-culpa. Mesmo indispensável para a manutenção da atividade industrial – que movimenta cerca de R$ 1,2 trilhão da economia brasileira segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) –, a mineração gera fortes impactos negativos tanto para o meio ambiente, quanto para as comunidades instaladas nas proximidades, seja extinguindo a vegetação nativa, seja descartando resíduos de maneira irregular. É claro que, assim como em outras atividades, é praticável reduzir essa agressão pela continuidade da espécie – no caso, nós, terráqueos. Na medida do possível, por ali tudo pareceu menos agressivo do que já vimos em outras pedreiras. Claro que não perderíamos a fotografia com todo esse elã “Perdido em Marte” para interpretar – e metabolizar – esse enredo do nosso jeito, com uma intercessão pseudoagreste entre a moda e o design. Afinal, é verão – e o verão, para algumas pessoas, pode ser muito mais quente do que supõe a nossa vã filosofia (devidamente refreshed pelos amperes do ar-condicionado) pode supor. Brava gente brasileira!