le ballon rouge

Vibrando como glóbulos de sangue em artérias inabitadas, a nova série do fotógrafo Denilson Machado questiona a presença do homem no tempo e no espaço por meio da interferência de centenas de balões que solta em locações espaciais de enorme apelo arquitetônico – seja para a ocupação num futuro próximo, seja para reavivar a memória de um passado distante

Como as vanitas da pintura medieval, os balões nos falam da brevidade, nos gritam que somos pó e a ele retornaremos

A memória de um espetáculo

Em um de seus contos, o escritor Bernardo Carvalho nos apresenta a um personagem que, ao se aproximar da morte muito rico e ainda jovem, planejou uma apoteose final: “Absolutamente todo o dinheiro deveria ser gasto num espetáculo de balões, centenas de balões, com a condição de que ninguém o presenciasse, um festival de balões no meio da selva, desgovernados, sem ninguém para dirigi-los ou vê-los (…) Um espetáculo fabuloso, que não teria sido visto por ninguém”. 

Ao olhar detidamente as imagens desta série do fotógrafo Denilson Machado, meu pensamento oscila entre dois personagens ficcionais: um, o promotor do espetáculo de balões sem espectadores, e outro, bem diverso, o menino do filme “Le Ballon Rouge”, que passeia pelas ruas escuras e cinzentas da Paris pós-guerra com seu balão de cor vibrante. Talvez nem tão diferentes assim: o menino que tinha no balão seu amigo imaginário contra o tédio da vida e a incompreensão das pessoas pode ser o mesmo rapaz que encerra sua jornada com a inútil dança de balões no espaço azul sobre a selva desabitada.

Alguém que, ao assumir a impermanência, recusa-se a deixar sua marca no mundo. Milionário e envolvido com artes, poderia ter criado um museu com seu nome, uma fundação, uma rua ou uma praça, um filho, um livro, uma árvore. Optou por não se perpetuar – seu legado é essa ode muda ao efêmero da vida, um espetáculo que se esgota no momento mesmo em que acontece, que não aspira a continuidade em registros ou na memória das gentes. E, como as vanitas da pintura medieval, os balões nos falam da brevidade, nos gritam que somos pó e a ele retornaremos.

“Toda foto é um memento mori”, escreveu a escritora Susan Sontag. Toda foto, por baixo do verniz da beleza na superfície do papel fotográfico, nos lembra, incessantemente, do que se foi, do quão frágil somos todos nós. Fotos são silenciosas testemunhas, ao congelar um momento, do “impiedoso passar do tempo”. Olho mais uma vez, com atenção, as fotos de Denilson. Vejo nos ambientes cuidadosamente escolhidos as marcas do tempo, um tempo ancestral que só sobrevive na memória. São como cenários impecáveis e vazios que adormeceram há muito para só voltar à vida com a beleza do vermelho dos balões que vibram, como glóbulos de sangue em artérias inabitadas. É possível ouvir o murmúrio do vento que envolve e faz flutuar as bolas rubras, cheias apenas do sopro da vida e da esperança, e entender que as fotos e o fotógrafo nos falam do desejo de, apesar de tudo, lutar contra o vazio e  reconstruir um mundo a partir das memórias – um paraíso perdido finalmente reencontrado e, agora, a salvo do esquecimento.